por Tarcyla Fidalgo Ribeiro
A inflexão ultraliberal estabelecida no Brasil a partir de 2016 trouxe consigo uma movimentação também na gestão da terra nacional, a partir da alteração do modelo da regularização fundiária no país, que se voltou para a privatização e financeirização do vasto estoque de terras brasileiro a partir da priorização da titulação dos imóveis, via propriedade privada individual.
Neste sentido, o que poderia representar maior segurança e garantia de direitos para a população mais pobre pode se configurar em uma grande ameaça para essa mesma população. Isto porque, os imóveis regularizados, especialmente sob o regime jurídico da propriedade privada individual, atraem ainda mais o interesse do mercado imobiliário que, assediando os moradores com valores que podem parecer inicialmente atrativos, acaba retirando-os do território sem a perspectiva de que consigam se realocar em áreas próximas. Por sua vez, a regularização dos imóveis tende a levar a um aumento do valor dos aluguéis e do custo de vida em geral, a partir da formalização de serviços e da cobrança de impostos e taxas ligados à propriedade da terra
Para bem compreender a questão, é fundamental dedicar algumas linhas a uma adequada contextualização sobre a situação das terras do país.
A irregularidade fundiária é uma realidade no país desde a invasão portuguesa em 1500. As sucessivas políticas que fatiaram o país em extensas porções de terra concedidas a nobres e membros da elite, mais pretendiam legitimar um determinado arranjo político e social do que formalizar a ocupação da terra no país.
Breve histórico
A primeira lei brasileira que buscou formalizar o estoque fundiário nacional – a Lei de Terras de 1850 – optou pela adoção do paradigma da propriedade privada, buscando implementar a circulação da terra como mercadoria, com a exclusão do seu acesso pelos mais pobres. Apesar das intenções estabelecidas na Lei de Terras, a norma não alcançou a efetividade esperada, encontrando resistências entre as próprias elites, para quem a terra já significava muito mais que poder econômico, constituindo-se em fonte de status social e poder político.
No período de 150 anos que transcorreu desde a Lei de Terras até o século XXI, contamos com legislações e políticas pontuais sobre o tema da regularização fundiária, enquanto assistimos ao desenvolvimento urbano explosivo do país, com inúmeras cidades se expandindo sob uma base fundiária irregular.
No início do século XXI, temos, portanto, um cenário de ampla irregularidade fundiária, que perpassa os espaços urbanos e rurais do país. Esse cenário causou – e continua causando – um amplo espectro de impactos sociais e econômicos, dentre os quais a multiplicidade de sentidos sociais vinculados à terra (status social, poder político etc.) e a dificuldade de sua mercantilização formal, que se expressa também pelo baixo grau de desenvolvimento de títulos financeiros de lastro fundiário, como as hipotecas, Letras de Crédito Imobiliário (LCI), entre outros.
Governo Lula: nova legislação
Neste contexto, em 2009, durante o segundo governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, passamos a contar com a primeira legislação brasileira que, desde a Lei de Terras, se dedicou de forma mais ampla e sistemática ao tema da regularização fundiária. Tratava-se do capítulo III da Lei 11.977/09, que dispunha sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida.
Esta lei estabelecia o que os estudiosos sobre o tema viriam a chamar de regularização fundiária plena, um modelo no qual o instrumento se desenhava como um instrumento de garantia de direitos, especialmente voltado para a população de baixa renda residente nos milhares de assentamentos informais em todo o país. Neste modelo, a regularização fundiária constituía-se, necessariamente, em um processo complexo, de múltiplas etapas, que passava por medidas urbanísticas, sociais, ambientais e jurídicas, tendo como última etapa a entrega da documentação dos imóveis.
Uma peculiaridade importante da regularização fundiária no Brasil é que, a partir da repartição de competências entre os entes federativos estabelecida pela Constituição Federal de 1988, cabe à União definir normas gerais sobre o tema, mas compete aos municípios executar as políticas de regularização fundiária. Sendo assim, para que o capítulo III da Lei 11.977/09 tivesse efeito prático, deveria se capilarizar pelos mais de 5.500 municípios brasileiros, enfrentando desafios como a falta de recursos, de profissionais especializados e de interesse político, dado o prazo elevado para o cumprimento de todas as etapas da regularização fundiária em seu modelo “pleno”.
Governo Temer marca retrocesso
Mas, antes que tal capilarização fosse alcançada, e os respectivos desafios fossem trabalhados e superados, o capítulo III da Lei 11.977/09 foi revogado, com apenas sete anos de vigência, pela Medida Provisória 759, em 22 de dezembro de 2016, poucos meses após a efetivação do golpe jurídico-parlamentar que retirou do poder a presidenta Dilma Rousseff.
A referida Medida Provisória, posteriormente convertida na Lei 13.465/17, promoveu uma inflexão no modelo de regularização fundiária nacional. Embora o conceito legal de regularização fundiária ainda traga a perspectiva de um conjunto de medidas jurídicas, sociais, urbanísticas e ambientais, a lei autoriza que todas essas medidas sejam realizadas após a entrega da documentação dos imóveis, em um plano para cujo descumprimento não há qualquer previsão de penalidade.
Além disso, cria um instrumento “coringa”, a legitimação fundiária, aplicável a terras públicas e privadas, que permite a entrega da documentação aos moradores – sempre com base na propriedade privada – em poucos meses.
Esse instrumento se alinha com diversos dispositivos da mesma lei, que dispõem sobre a alienação de bens públicos, e com várias outras normas posteriores, no sentido da privatização do vasto patrimônio fundiário público nacional.
Com isso, o novo modelo de regularização fundiária nacional se insere em um movimento mais amplo de privatização e homogeneização jurídica-formal do estoque de terras nacional, sem a – já antiga – preocupação com a garantia de direitos dos mais vulneráveis.
Não por acaso essa inflexão se dá logo após a efetivação do golpe jurídico-parlamentar que levou ao poder uma coalizão político-econômica totalmente comprometida com o rentismo e a financeirização.
Em um país de dimensões continentais como o Brasil, com um histórico de mais de 500 anos de irregularidade fundiária, a terra se apresenta como uma fronteira de acumulação capitalista em potencial, sendo fundamental, para tanto, a sua adequação à lógica e forma capitalista, por excelência da propriedade privada individual.
O aprofundamento da exploração capitalista da terra no Brasil depende exatamente da homogeneização do seu regime jurídico-formal em torno da propriedade privada individual, o que se tornou o principal objetivo das políticas de regularização fundiária no novo modelo estabelecido pela Lei 13.465/17. No lugar de garantir direitos para a população mais vulnerável, o objetivo passou a ser converter, tanto quanto possível, a terra em mercadoria e lastro de títulos financeirizáveis.
Os efeitos para as camadas mais pobres
Neste cenário, a regularização fundiária pode se transformar em uma verdadeira ameaça para os mais pobres e vulneráveis, em especial nas grandes cidades brasileiras. Isto se dá por dois mecanismos principais: o assédio direto para a venda dos imóveis e o aumento dos custos de vida para os moradores. Além disso, em médio/longo prazo, a disseminação de títulos financeirizáveis lastreados na terra pode levar a uma situação de superendividamento e espoliação, nos moldes do processo que antecedeu a crise de 2008 nos Estados Unidos, originada na insolvência e superemissão de títulos de hipoteca, exatamente lastreados em imóveis urbanos ocupados por população de baixa renda.
Assim, o novo modelo de regularização fundiária – pautado pela prioridade da homogeneização do estoque de terras nacional, a partir da distribuição de títulos de propriedade privada – enquanto favorece o aprofundamento da mercantilização e financeirização da terra, significa um risco para a permanência de populações vulneráveis, especialmente nas áreas valorizadas das grandes cidades brasileiras. A expulsão dos moradores desses espaços, por sua vez, representa um aprofundamento do já estarrecedor cenário de desigualdade socioespacial em nossas cidades, com a negação do direito à moradia e do direito à cidade em nome do rentismo e da financeirização.
Os últimos anos ainda não foram suficientes para demonstrar os potenciais disruptivos da Lei 13.465 e do novo modelo de regularização fundiária, especialmente considerando o cenário de múltiplas crises que se aprofundou no Brasil desde 2017. Apesar disso, a estrutura jurídica e institucional está pronta, aguardando o momento mais propício para iniciar a disseminação de títulos de propriedade privada individual pelo país e aprofundar o ideário da terra como mercadoria, em oposição à sua visão como direito, defendida historicamente por movimentos sociais e instituições da sociedade civil como o Fórum Nacional de Reforma Urbana e o Observatório das Metrópoles.
A alternativa do Termo Territorial Coletivo
Apesar do risco iminente, não se trata de defender a irregularidade, mas, sim, de buscar alternativas que possam garantir a permanência dos moradores no pós-regularização. Neste sentido, algumas iniciativas podem até mesmo se aproveitar desse modelo de titulação rápida, como o Termo Territorial Coletivo.
Trata-se do modelo brasileiro de “Community Land Trust”, já consagrado internacionalmente como uma das fórmulas mais bem-sucedidas de garantia da permanência de populações urbanas vulnerabilizadas e realização de processos de desenvolvimento territorial protagonizados pelos moradores. O modelo está previsto na nova agenda urbana, que em seu dispositivo número 107 traz a recomendação para que os Estados aderentes incentivem a adoção de Termos Territoriais Coletivos para a garantia do direito à moradia adequada e sustentável.
O Termo Territorial Coletivo opera por meio da separação da propriedade da terra e das construções, com a primeira ficando em nome da comunidade, por meio de uma pessoa jurídica formada e gerida pelos moradores para este fim, e a segunda, em nome dos moradores, por meio do direito de superfície – instrumento previsto na legislação brasileira há mais de 20 anos, mas com potencial ainda pouco explorado. Este modelo conjuga a liberdade individual com a força do coletivo, em um arranjo que tem se mostrado virtuoso em muitos países ao redor do mundo.
A terra, formalizada, é retirada do mercado permanentemente – já que a comunidade não pode vendê-la –, enquanto as casas podem ser negociadas, alugadas e deixadas de herança pelos moradores com toda a segurança trazida pela formalização.
Apesar do potencial para a manutenção e desenvolvimento de comunidades, o Termo Territorial Coletivo é apenas uma das possibilidades de luta contra políticas de regularização fundiária voltadas para a homogeneização do largo estoque fundiário nacional sob o regime jurídico da propriedade privada individual. É fundamental que a questão fundiária ocupe um maior espaço no debate público e que as lutas neste campo, historicamente realizadas por movimentos sociais e algumas instituições da sociedade civil, sejam visibilizadas e apoiadas.
Terra e democracia são indissociáveis e indispensáveis para pensar um novo Brasil mais voltado para as necessidades do seu povo, em detrimento de interesses de frações da elite capitalista.
Tarcyla Fidalgo Ribeiro é coordenadora do projeto Termo Territorial Coletivo na ComCat, pesquisadora do INCT Observatório das Metrópoles e Conselheira regional sudeste do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU).