Por Pablo Lira e Daniel Cerqueira

Segundo dados de 2021, analisados no Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), com mais de 40 mil homicídios registrados, por ano, o Brasil é o país mais violento do mundo. Assustadoramente, o Brasil concentra mais de 11% dos assassinatos contabilizados anualmente no mundo. Vale ressaltar que na perspectiva demográfica os brasileiros representam 3% da população do globo. Proporcionalmente, com cerca de 20 homicídios por 100 mil habitantes, o país destaca a 17ª maior taxa de homicídios do mundo.

A mencionada concentração dos homicídios e outros crimes violentos no Brasil não é explicada somente por fatores ligados aos aspectos demográficos, socioeconômicos ou relacionados a disfuncionalidades do sistema de justiça criminal. Para além desses, existem condicionantes ligados à (des)ordem urbana que contribuem para que crimes violentos se concentrem potencialmente nas cidades e metrópoles brasileiras.

A violência não se distribui de forma homogênea no espaço. A estrutura socioeconômica desigual e segregada dos ambientes urbanos brasileiros influenciam a distribuição espacial da criminalidade violenta.

Com base em autores da teoria crítica urbana, como Henri Lefebvre, David Harvey, Milton Santos e Neil Brenner, constata-se que o espaço urbano é marcado por assimetrias e desigualdades, que são regidas pela lógica capitalista hegemônica. O fenômeno urbano não se caracteriza como uma unidade territorial delimitada e integrada em um contínuo espaço. O urbano é marcado por violências, desterritorializações, segregações socioespaciais e incorpora a dimensão do desenvolvimento desigual.

O direito à cidade se desdobra nesse meio de escalas mutáveis em espaços segregados e desiguais. Na concepção lefebvreriana, o direito à cidade aponta para a garantia universal de acesso e da fruição democrática das condições básicas de sobrevivência e dos serviços e equipamentos coletivos urbanos (moradia, trabalho, saúde, educação, segurança, transporte, lazer, entre outros).

De forma conjugada com as garantias possibilitadas pelo direito à cidade e com o propósito de reduzir a violência nas cidades brasileiras, o modelo de segurança cidadã pode ser tomado como norte para o desenvolvimento de políticas públicas efetivas pelo governo federal e governos subnacionais. A segurança cidadã consiste na integração de estratégias preventivas e de repressão qualificada para controlar e diminuir crimes e violências, com base em diagnósticos, evidências científicas e a gestão democrática com foco nas comunidades mais impactadas pela insegurança pública.

Todavia, no Brasil, o atual contexto de intolerância, o esvaziamento das pautas da reforma urbana e direito à cidade e a radicalização dos debates políticos e convívio social pode ampliar ainda mais o quadro da violência e enfraquecer a promoção de políticas de segurança cidadã que visam somar na construção do direito à cidade. Nos últimos anos, os brasileiros estão acompanhando a marcha da insensatez promovida pelo presidente Jair Bolsonaro na sua corrida armamentista que busca, aparentemente, terceirizar a segurança pública, assim como o direito à cidade, garantias constitucionais e essenciais à vida dos cidadãos.

A partir dessa breve contextualização, esse texto busca analisar, à luz de referências da teoria crítica urbana e da segurança pública, com base em informações com fontes especializadas, como o portal do FBSP, o quanto a ausência de um programa nacional de segurança cidadã dificulta a construção de uma cultura de paz nas cidades brasileira. Ao invés disso, com o discurso de ódio e intolerância do governo Bolsonaro, que se baseia na corrida armamentista, está fomentando conflitos e violências nos ambientes urbanos.

Foto: Agência Brasil.

Política armamentista bolsonarista: mais um devaneio negacionista ou uma ação para ameaçar a democracia?

Estudos robustos, como as pesquisas do FBSP, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e Instituto Sou da Paz, corroboram que quanto mais armas, mais crimes. Apesar disso, nos últimos anos a discussão sobre a flexibilização do acesso às armas de fogo ganhou evidência no Brasil com a ascensão de grupos políticos conservadores da extrema direita. Desde que o governo Bolsonaro assumiu o Palácio do Planalto, em 2019, já foram editados mais de 40 instrumentos, dentre os quais se destacam decretos, portarias e projetos de lei, ainda em aberto, que objetivam única e exclusivamente ampliar o acesso às armas e munições. Alguns desses instrumentos foram questionados no Supremo Tribunal Federal (STF). No final de 2020, o ministro Edson Fachin suspendeu a decisão do governo federal que havia zerado a alíquota para a importação de armas de fogo.

Conforme assinala o Anuário do FBSP 2022, a corrida armamentista promovida pelo governo Bolsonaro resultou em um aumento de 473,6% de registros ativos de Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs) de armas de fogo entre 2018 e 2022. Com as mudanças legislativas recentes, esses indivíduos podem ter registradas até 60 armas de fogo, sendo 30 fuzis, e podem comprar aproximadamente 180 mil munições por ano, um verdadeiro arsenal. Existem no país cerca de 4,4 milhões de armas de fogo em estoques particulares, sendo que a cada três armas registradas, uma está irregular.

A partir desses números, é possível compreender como milhões de unidades têm grande probabilidade de serem desviadas para serem utilizadas por bandidos que atuam em grupos de traficantes de drogas, de milicianos ou em outros grupos criminosos. Isso sem falar do contrabando internacional de armas de fogo, que alimentam esses mesmos criminosos.

Segurança cidadã na perspectiva do direito à cidade

Considerando as drásticas consequências e os interesses escusos da política armamentista colocada em curso pelo governo Bolsonaro, torna-se de fundamental importância o desenvolvimento de estratégias de segurança cidadã na perspectiva do direito à cidade, em um projeto maior de reconstrução e transformação nacional.

O direito à cidade representa muito mais que uma liberdade individual de acesso a equipamentos e serviços urbanos. Constitui um direito elementar de mudar o cidadão e a coletividade, transformando a cidade. Caracteriza-se como um direito coletivo, uma vez que tal transformação depende de um exercício conjunto democrático no sentido de remodelar formas, funções, estruturas e processos urbanos.

A não manutenção do direito à cidade favorece a segregação socioespacial e as desigualdades. Os contrastes sociais emergem na paisagem urbana, distinguido os bairros privilegiados e as zonas desfavorecidas. É nesse contexto de contrastes, segregações, desigualdades e injustiças sociais que a violência deixa suas marcas nas cidades e metrópoles brasileiras. Os bairros socioeconomicamente privilegiados concentram os crimes contra o patrimônio e as comunidades desprivilegiadas registram em maior proporção os crimes violentos contra a pessoa.

É necessário diminuir as desigualdades socioeconômicas dos ambientes urbanos brasileiros para garantir um maior controle dos índices criminais. A segurança cidadã é um caminho que se articula na perspectiva do direito à cidade como uma alternativa democrática, republicana e constitucional.

Na ótica do planejamento urbano, ações de requalificação de espaços públicos e de otimização da fiscalização de áreas e imóveis abandonados apresentam potencial de dissuadir delitos e ampliar a vigilância natural de bairro e cidades. Nesse sentido, a gestão territorial urbana é crucial e se soma a outras políticas públicas preventivas à criminalidade violenta.

Na ausência de um programa nacional de segurança cidadã, alguns Estados desenvolveram, ao longo das últimas duas décadas, políticas de segurança pública exitosas que estão contribuindo para reduzir a violência, como são os casos de:

  • São Paulo e o conjunto de estratégias de prevenção e repressão que vem dando resultado na diminuição de crimes desde 2000.
  • Pernambuco e o programa Pacto pela Vida, inicialmente implantado em 2007.
  • Espírito Santo e o programa Estado Presente, que se iniciou em 2011.
  • Paraíba e a política pública intitulada Paraíba Unida pela Paz 2011.
  • Pará e o programa Território da Paz, que iniciou suas atividades em 2019.
  • Rio Grande do Sul e o RS Seguro, inicialmente desenvolvido em 2019.

Em comum, essas políticas públicas foram concebidas e vêm sendo desenvolvidas à luz das premissas da segurança cidadã. Via de regra, elas congregam as seguintes características: a) planejamento e monitoramento com base em evidências científicas; b) coordenação envolvendo a liderança e comprometimento da alta gestão, por exemplo os governadores; c) articulação entre instâncias de segurança pública e Justiça criminal, tais como poderes republicanos, Ministério Público, Defensoria Pública, municípios, entre outros; d) integração entre as forças policiais na repressão qualificada ao crime; e) conjugação de políticas públicas sociais, econômicas e de planejamento urbano de prevenção ao crime nas cidades e metrópoles, com focalização no grupo de risco dos homicídios, a saber, jovens do sexo masculino, negros, com baixo nível de instrução e moradores de áreas segregadas e/ou periféricas urbanas, conforme destacado pelos estudos do FBSP e IPEA.

Essas estratégias tornam possível as práticas da segurança cidadã alicerçadas na perspectiva do direito à cidade e promovem uma verdadeira transformação, por meio de oportunidades socioeconômicas, na vida das populações que mais sofrem os efeitos da criminalidade urbana brasileira.

Por uma articulação nacional em favor da segurança cidadã

Políticas públicas orientadas pela segurança cidadã, fundamentadas na perspectiva do direito à cidade, podem ser planejadas e implementadas pelo governo nacional e de forma articulada com os governos subnacionais, com o propósito de reduzir a criminalidade violenta nos ambientes urbanos, onde os delitos se encontram mais concentrados.

Para isso acontecer, é muito importante uma articulação nacional em torno de um pacto de reconstrução e transformação do Brasil em diversas áreas de políticas públicas, especialmente no campo da segurança pública, uma das mais achincalhadas pelo irresponsável governo Bolsonaro.

É nesse sentido que nos posicionamos, enquanto uma das redes nacionais de pesquisa mais produtiva e ativa, o Observatório das Metrópoles, pelo desenvolvimento e execução de uma ação emergencial de proteção da vida e reconstrução do Brasil, com estratégias para dinamizar o crescimento econômico e promover, concomitantemente, a proteção da vida e do bem viver, a defesa do trabalho e renda com bem-estar social; a garantia de acesso a bens comuns; ampliação de acesso à serviços e equipamentos coletivos urbanos; a defesa irrestrita da democracia e república.

Nesse sentido, é possível os brasileiros acreditarem na construção de uma cultura de paz, por meio dessa articulação maior em favor do desenvolvimento de uma política pública de segurança cidadã alicerçada na perspectiva do direito à cidade, e sonharem com um país menos violento e mais seguro, tolerante e pacífico. Sim, nós acreditamos! Existe uma luz no meio e final do túnel!

Pablo Lira é diretor de Integração do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), professor da Universidade Vila Velha (UVV) e coordenador do Núcleo Vitória do INCT Observatório das Metrópoles. Daniel Cerqueira é pesquisador de carreira do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e diretor-presidente do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN).