por Luciano Fedozzi
Imediatamente após as invasões golpistas dos três poderes ocorridas no dia 08 de janeiro de 2023, o grupo AtlasIntel realizou pesquisa de opinião pública. Embora no calor dos acontecimentos, os dados são relevantes para avaliar o contexto político e prospectar possíveis cenários na reconstrução do país e na retomada da democracia. Importante ressaltar que o acesso ao banco de dados nos daria melhores condições para efetuar testes estatísticos necessários, especialmente para relacionar perfis sociais e atitudes relativas a esses fatos. Apesar dessas limitações, são oferecidas nesse texto algumas interpretações dos dados para ajudar a analisar os acontecimentos e prospectar o futuro imediato. Resta dizer que após a presente análise houve divulgação de nova pesquisa por DataFolha realizada nos dias 10 e 11/01, há dois dias dos eventos em Brasília, trazendo perguntas e números divergentes. Não vamos nos deter nesse momento a análise e possível comparação das duas pesquisas.
É preciso separar os dados da pesquisa Atlas em dois blocos: os que dizem respeito à invasão dos três poderes; e os que medem questões relativas às eleições e à democracia.
A grande maioria dos eleitores discorda da invasão (76%). Outros 18% concordam. Além disso, as medidas de intervenção do governo Lula e do STF após a invasão são apoiadas por ampla maioria, cerca de 70%. A rejeição aos atos de vandalismo mostra que, mesmo entre os eleitores de Bolsonaro, a invasão e a tentativa de golpe não foram aceitas por percentual majoritário dos que opinaram (48,6%). Ao mesmo tempo, não deixa de ser grande entre esses eleitores o apoio ao ato de vandalismo e violência golpista, quase 40%. Em números absolutos, seriam 20,4 milhões de pessoas. Isto é coerente com a negação dos resultados eleitorais e a ampla mobilização do bolsonarismo nos últimos meses após as eleições presidenciais.
A pesquisa traz perguntas, todavia, que dificultam uma interpretação mais detalhada sobre o real apoio à invasão. Isso fica evidente nas respostas dadas a justificação dos atos. O percentual obtido pela ideia de que a invasão foi “totalmente injustificada” é pequeno, 53%. Corresponde mais ou menos ao apoio eleitoral da oposição que venceu o ex-presidente e votou em Lula no 2º Turno. A soma dos que acham que ela foi “justificada em parte” (27,5%) e “totalmente justificada” (10,5%) chega a 38% dos respondentes. É um percentual alto. Nossa hipótese é que esta pergunta permite que os respondentes relativizem as invasões, mas seu caráter difuso não permite captar o sentido subjetivo dos porquês das justificativas das invasões. Veja-se que entre os eleitores de Bolsonaro, o maior percentual é o dos que acham que o ato pode ser “justificado em parte” (56,5%). Esse público provavelmente é o que votou no ex-presidente, mas condenou as invasões. Ou seja, não se soma aos atos violentos e/ou golpistas, conforme as respostas de concordância ou não com as invasões acima citadas. O núcleo duro do bolsonarismo é o que acha o ato “totalmente justificado”, de 20,5%. Ele corresponde mais ou menos ao grupo que concordou com as invasões (18%). Esses dados são muito relevantes para indicar o potencial de separação entre os setores de extrema-direita e direita conservadora. Quanto mais o núcleo fascista adotar estratégias radicalizadas, maior as possiblidades desse setor ser isolado na sociedade e no conjunto da oposição ao governo Lula. Interessa sobremaneira que a extrema-direita deixe de hegemonizar a direita no país.
Por outro lado, a possível responsabilização de Bolsonaro pelos atos é restrita ao percentual dos que já são contra ele (50,1%), não indicando culpabilidade por parte dos seus eleitores que acham em grande parte que ele não é responsável pela invasão (90%).
Todavia, o ato da invasão não foi positivo para o bolsonarismo na opinião pública, que se isolou da maioria, não só da parcela do eleitorado lulista como também da maioria do eleitorado bolsonarista. Isto é um dado muito positivo para a disputa política em curso porque diminuiu o poder do movimento bolsonarista saído das eleições. Os fatos graves – que não redundaram em uma ocupação continuada dos três poderes com desfecho imprevisível para solucionar o impasse golpista porque o número de pessoas participantes das invasões foi abaixo do esperado por eles – precisa ser lembrado ad nauseam pelo campo democrático do país, a fim de criar uma mácula identificadora do movimento bolsonarista de extrema-direita.
Os outros dados trazidos pela pesquisa sobre questões relativas à democracia e às eleições são muito preocupantes. Eles revelam que o bolsonarismo conseguiu amplo apoio à sua narrativa de fraude eleitoral: 40% acham que Lula não ganhou mais votos nas eleições. Apenas 56,4% dos entrevistados acham que Lula ganhou mais votos, um pouco mais do que Lula recebeu nas eleições. Entre os eleitores de Bolsonaro, esse percentual chega a 90%. Essa falsa narrativa é o grande mote que anima e justifica a mobilização dos bolsonaristas.
Além disso, é grande o público favorável a uma intervenção militar para invalidar o resultado eleitoral (36,8%). Os que são contra a intervenção ultrapassam apenas um pouco o percentual obtido por Lula nas eleições (54%). E entre os eleitores de Bolsonaro, são incríveis 81%. Em termos absolutos seriam cerca de 41,3 milhões de cidadãos favoráveis a intervenção militar. Sendo que apenas 11,5% são declaradamente contra uma intervenção militar pós-eleições. Os dados mostram a eficácia da narrativa contra as urnas eletrônicas e pós-eleições, que deposita nas forças armadas a expectativa de reversão do quadro. Não resta dúvida sobre a ampla base social que haveria caso tivesse condições para essa intervenção.
Quanto às posições sobre uma possível ditadura militar, parece que os respondentes a separam (ingenuamente) da “intervenção militar para invalidar as eleições”, porque apenas 9% se dizem favoráveis a uma ditadura e outros 73,5% são contra. Mesmo entre os bolsonaristas, o apoio a uma ditadura não é majoritário, são em torno de 20% e metade são contra: 51,1%. Cerca de 30% disse que não sabe ou não quis responder. É evidente a tendência antidemocrática entre os eleitores de Bolsonaro, comparativamente aos demais candidatos que disputaram as eleições presidenciais, mas é possível perceber também que a metade dos que votaram nele não estariam no espectro autoritário clássico e sim possivelmente identificados com os valores e atitudes de direita liberal-conservadora que cresceu muito a partir de 2016 e do governo Bolsonaro (anti-petistas, lavajatistas, evangélicos etc).
Esses dados mostram um país ainda polarizado, com grande percentual achando que as eleições não foram legítimas, e que tem nas forças armadas a esperança de uma saída. Isso significa que continuarão atuando principalmente por meio das redes sociais e dos mandatos públicos de extremistas recebidos em grande medida nas últimas eleições de 2022.
Embora os percentuais sobre o apreço à democracia mostrem certa continuidade com outras pesquisas (em torno de 75% de apoio), fica evidente porque os militares gozam de prestígio e se beneficiaram dos acampamentos pós-eleições e dos apelos públicos por sua intervenção na vida política, pelo menos desde 2016. Como sabemos, o poder dos militares é uma herança antidemocrática da “anistia” na transição negociada para a redemocratização.
Em síntese, os dados mostram que a invasão não foi uma boa estratégia para os bolsonaristas. A grande maioria da opinião pública a rejeitou, inclusive a maioria percentual dos eleitores de Bolsonaro. Eles foram para o tudo ou nada e forneceram bons elementos para o governo Lula e as forças progressistas passarem da resistência à ofensiva visando isolar o grupo mais radicalizado e de extrema-direita. Foi criada uma grande oportunidade para justificar o combate por todos os meios legais na repressão e na responsabilização legal e política pelas ações antidemocráticas. O núcleo duro do bolsonarismo ficou nu e precisa ser mostrado como ele é: um grupo terrorista, golpista e destruidor de sociedades.
A reunião com governadores, incluindo-se os bolsonaristas, foi uma prova do acerto da estratégia de provocar o posicionamento dos representantes eleitos e das instituições, frente ao significado da invasão, a fim de isolar os setores mais radicais dos bolsonaristas. As medidas iniciais do STF também foram recados importantes, inclusive para os estados condescendentes com os golpistas. Deve prosseguir com a penalização dos setores econômicos, do agro e dos políticos que financiam e que animam a extrema-direita. Certamente esses e outros setores econômicos, se puderem, irão boicotar o governo Lula.
A invasão forneceu a senha para a justificativa da ofensiva estatal que se faz necessária com mão pesada. Essa via coercitiva do Estado foi aberta e deve se fortalecer, aproveitando agora o vazio do discurso que já começava a crescer sobre o possível “revanchismo” pós-Bolsonaro, inclusive em meios de comunicação corporativos. Culpabilidade e punição exemplar são fundamentais nesse sentido para a garantia do Estado democrático de direito.
Ao mesmo tempo, as questões relativas à disputa pela hegemonia, ao consenso social na sociedade constituem o grande desafio, talvez o mais difícil porque estamos diante de novos fenômenos comunicativos e de uma oposição que foi vitoriosa na criação de narrativas hoje tornadas quase intransponíveis à racionalidade e à verdade. Assim, o mais difícil será a disputa na base social hegemonizada pela narrativa golpista e pelas fake news amplamente utilizadas nas redes sociais e nas formas de articulação social com os segmentos legislativos e de governos que eles dominam após as eleições de outubro, que não são poucos.
Em grande parte, essa disputa terá de ser realizada pelas políticas públicas do governo Lula. O governo tem que dar certo, com crescimento econômico e inclusão social, com resultados para as classes populares e camadas médias, em políticas de bem-estar nas várias área e segmentos. Recessão e fracasso econômico serão uma catástrofe diante da espreita dos setores alternativos ao governo Lula, que poderão ganhar novo fôlego em pouco tempo.
Mas será um erro achar que somente as questões materiais serão suficientes para solapar as bases valorativas que animam a extrema-direita. A batalha cultural e de organização nas bases e nas intuições é cada vez mais importante para a disputa entre projetos de país e de sociedade. Para isso, será necessária uma política de comunicação muito além dos meios tracionais disponíveis pelos governos. Também será fundamental desenvolver uma política de educação popular como parte das políticas redistributivas e de bem-estar do governo Lula. Ou, como diz Frei Beto, desenvolver as forças “indutivas” que movem as pessoas comuns. Ao mesmo tempo, os atores do campo democrático e popular que atuam na sociedade civil estão desafiados a evoluir em muito nas suas estratégias de comunicação e formação de massas, superando o espontaneísmo, o amadorismo e o atraso ainda fortemente presentes. No mundo contemporâneo não há movimento social e disputa pela hegemonia sem política de comunicação de massas, em especial nas redes sociais e usos das TICs.
Ganhar o apoio das classes populares diante dos projetos conservadores e neoliberais será decisivo para enfrentar as ameaças que não vão cessar. Quando o bolsonarismo estiver isolado e restrito aos percentuais de apoio que a extrema direita historicamente teve no Brasil (pelo menos desde a redemocratização), podemos dizer que uma grande batalha foi ganha, sempre provisoriamente, é claro, porque esta guerra será longa, árdua, complexa e difícil.
Luciano Fedozzi é Professor de sociologia da UFRGS, pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles e do Centro de Estudos Internacionais sobre Governo – CEGOV/UFRGS.