Por Sarah Lúcia Alves França

O Brasil está vivendo uma crise multidimensional. O desmonte da política urbana desencadeou conflitos nos vários aspectos. A desigualdade econômica e exclusão social afetam a vida de 84,72% da população urbana. Embora a Constituição Federal de 1988 estabeleça no artigo 6º que educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte são direitos sociais, muitos estão ausentes em grande parcela da população.

As dez regiões metropolitanas mais populosas do país concentram 70 milhões de habitantes dos 210 milhões, segundo o IBGE, e são marcadas pela pobreza, precariedade habitacional e urbanística, desemprego, dificuldades de acesso à educação, saúde, saneamento básico, degradação ambiental e aumento das áreas de risco diante das mudanças climáticas.

Diante disso, duas contribuições recentes são referências no debate sobre desafios para transformação das cidades brasileiras no enfrentamento da crise atual. O Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) Observatório das Metrópoles tem como projeto em elaboração, a coleção Reforma Urbana e Direito à Cidade, que prevê a publicação de 17 livros, com balanço crítico sobre caminhos nas metrópoles. A Fundação Perseu Abramo publicou em junho de 2022, o caderno Teoria e Debate, da série Reconstrução e Transformação do Brasil, fornecendo subsídios para proposições de políticas públicas.

Esses estudos defendem que a cidade, como lócus dos entraves sociais, deve ser o centro nas estratégias de recuperação da crise social, econômica e política, a partir da reconstrução da melhoria da qualidade de vida, com investimentos que potencializem a efetivação do direito à cidade, perpassando pela geração de renda. Isso porque grande parte dos problemas decorre da precariedade dos salários e das condições de trabalho, impedindo o acesso à serviços urbanos necessários para a sobrevivência, face à mercantilização da moradia e privatização do saneamento básico e transporte público.

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Na habitação, as fórmulas anteriores de periferização da moradia estão evidentes no Programa Minha Casa Minha Vida, sob a premissa de fomentar a indústria da construção civil em meio à crise econômica mundial. Conforme dados do Ministério da Economia, o investimento de R$552,8 bilhões gerou a contratação de 6,140 milhões de habitações, em parceria com o setor imobiliário, sendo apenas 2 milhões destinadas às famílias de até 3 salários mínimos, justificada pelo baixo retorno lucrativo desse produto.

Entretanto, em 2019, o déficit habitacional quantitativo indicou a necessidade de 6,084 milhões de novas moradias, sendo que metade se refere ao ônus excessivo de aluguel, principalmente nas regiões Sudeste e Nordeste. Também é importante a necessidade de intervenções no tocante à qualidade habitacional, ou seja, inadequação fundiária e melhoria das moradias e seu entorno, como a Assistência Técnica de Habitação de Interesse Social (ATHIS). Os números alertam para a quantidade de domicílios com ausência de banheiro (359 mil em 2019) e de famílias que não tem a propriedade fundiária por escritura (3,557 milhões em 2019).

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Em contrapartida, o modelo atual de produção da habitação traçado pela lógica financeira de acumulação capitalista, decorre do movimento ligado à inflexão ultraliberal, como apontado pelo pesquisador Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro. O território metropolitano tem apresentado novas configurações espaciais, caracterizadas pela dispersão e segregação social, resultante da inserção de novos produtos de moradia privilegiada, como condomínios horizontais em áreas de transição rural-urbana, condomínios verticais do PMCMV em áreas desconexas, com graves consequências ambientais e distantes dos postos de trabalho. Esse modus operandi do mercado imobiliário tem exigido das prefeituras, alterações nas leis de uso e ocupação do solo, chancelando seus interesses.

A pandemia da covid-19 demonstrou a importância de reverter prioridades nas políticas atuais. Aquelas famílias carentes, à mercê da renda e do fechamento de postos de trabalho, se depararam com dificuldades decorrentes da precariedade da moradia, como cômodos separados por lençóis e alta densidade de moradores, impossibilitando o isolamento dos contaminados. A precarização do atendimento dos serviços de saneamento básico é latente, quanto à ausência de abastecimento de água e coleta de esgoto e a falta de banheiros das moradias, com maior concentração nas regiões Norte e Nordeste, dificultando o cumprimento das medidas preventivas de higiene.Essa situação crítica é realçada pelas 7,9% das pessoas internadas por doenças de veiculação hídrica, segundo o DATASUS, gerando um volume de R$70 milhões em despesas, somados aos recursos levantados para a construção emergencial de diversos hospitais de campanha, face à ineficiência do planejamento na gestão pública brasileira.

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Quanto ao direito à mobilidade, o aumento da tarifa do transporte público e a redução da qualidade do serviço do ônibus, utilizado diariamente por 24 milhões de pessoas, resultaram em problemas no orçamento dos trabalhadores. O agravamento da crise vivenciada pelo setor, com maior impacto na pandemia, desencadeou a demissão de 110 mil trabalhadores em 2020, com redução de empregos diretos nas empresas de ônibus, conforme a Associação Nacional das Empresas de Transporte Urbanos.

Nesse sentido, é preciso estabelecer um projeto nacional de geração de emprego e trabalho que contribua efetivamente para reverter a taxa de desemprego de 9,3% do país, que atinge 10,1 milhões de pessoas; eliminar a insegurança alimentar, que assola cerca de 30% dos brasileiros; e reduzir a pobreza de 60 milhões de brasileiros, os maiores alvo das ameaças da força ultraliberal.

É urgente a construção de uma nova agenda urbana que priorize investimentos para garantir direitos básicos como moradia, saneamento e mobilidade, atrelados às políticas de recuperação econômica das famílias. Portanto, a centralização da política urbana e metropolitana em toda discussão, deve ser fundamentada na justiça social e democratização do acesso aos direitos sociais, com novos arranjos de gestão participativa, integrada e intersetorial.

*Sarah Lúcia Alves França é arquiteta e urbanista. Professora da Universidade Federal de Sergipe e coordenadora do Núcleo Aracaju do Observatório das Metrópoles.