por Luciana Andrade e Jupira de Mendonça

A segregação constitui-se em um problema social, na medida em que não é apenas a expressão das desigualdades, mas é também produtora de desigualdades. Morar distante dos postos de trabalho, das oportunidades educacionais, culturais e de interação com pessoas com maior capital social e cultural diminui as chances de mobilidade social para os grupos situados nas partes inferiores da estrutura social. Já para os grupos de maior poder econômico, residir perto dessas instituições e de pessoas bem situadas, econômica e socialmente, aumenta as suas possibilidades de conseguir emprego, de ter uma formação cultural, enfim, de usufruir dos benefícios da cidade, concentrados perto dos seus locais de moradia. Daí a importância da compreensão da segregação não apenas como resultado de uma sociedade desigual, mas também como reprodutora dessa desigualdade. A luta por uma cidade justa e igualitária, em que diferentes grupos possam usufruir igualmente de seus benefícios, deve incorporar o combate à segregação socioespacial.

As metrópoles brasileiras foram historicamente marcadas por um padrão que se convencionou chamar de centro-periferia, com os grupos de mais alto status concentrados nas áreas centrais e os de mais baixo status nas periferias longínquas e precárias. A partir do final do século passado, esse padrão começou a apresentar algumas mudanças. Parcela dos grupos de mais alto status migraram para os condomínios fechados localizados fora das áreas centrais que tradicionalmente concentraram esses grupos. Em que pese a importância do fenômeno dos condomínios na organização das metrópoles e no aprofundamento da segregação, ele não retirou a força numérica e proporcional da concentração dos grupos de mais alta renda nas áreas centrais – que, por sua vez, tornaram-se ainda mais exclusivas desses grupos, configurando o que chamaremos aqui de hipersegregação. Por outro lado, parte das periferias, já dotadas de infraestrutura, passou a atrair parcelas dos grupos médios, o que levou à constituição de territórios mais heterogêneos e com maior mistura social.

Essas conclusões resultam de estudos do Observatório das Metrópoles tendo como fonte principal os Censos Demográficos. Uma vez que o último censo, que deveria ter sido realizado em 2020, ainda se encontra em curso, não temos como aferir, com a mesma metodologia, a continuidade ou não dessas tendências. No entanto, as observações de campo que temos feito e as investigações com outras fontes de dados mostram, por um lado, uma intensa ação do capital imobiliário tanto nas áreas mais ricas como nas periferias consolidadas, o que reforça a continuidade das duas tendências acima apontadas: a hipersegregação das elites e a constituição de espaços mais heterogêneos.

A permanência da segregação

Casa-grande e senzala, centro e subúrbio, centro e periferia, favela e asfalto são algumas das representações da segregação socioespacial presentes ao longo dos séculos na sociedade brasileira. Segregar significa separar, desunir, isolar, evitar aproximação, distinguir. Segregação residencial é a separação dos grupos sociais no território de uma cidade ou região. Quanto mais desigual e hierárquica for uma sociedade, mais os grupos ficarão distantes uns dos outros não apenas em relação ao local de moradia, mas também nas suas interações cotidianas nas escolas, nos meios de transporte, nas instituições de saúde, nos lugares de lazer e consumo, entre outros.

É muito comum associar e restringir a segregação aos pobres; eles é que estariam isolados do restante da sociedade. Em parte, isso se explica pelo fato de que no Brasil a maioria dos pobres vive em lugares muito precários, distantes dos serviços e dos postos de trabalho, e estão ali porque não têm outras escolhas. Mas os ricos também moram apartados das interações com os outros. A diferença é que vivem bem, em lugares onde o acesso é para os poucos que podem pagar por ele, e é também nesses lugares que se concentram os melhores e maiores investimentos públicos e privados. Um exemplo é a concentração dos principais equipamentos culturais nas áreas centrais das metrópoles brasileiras, longe, portanto, do local de moradia da maioria da população. O próprio patrimônio cultural, só muito recentemente passou a incorporar, ainda assim de forma bem desproporcional, espaços e manifestações culturais das populações de renda baixa, assim como da população negra. Os condomínios fechados são uma forma exacerbada dessa segregação; neles, as distâncias sociais são garantidas por muros e aparatos de segurança onde os não moradores só entram se convidados. São a expressão máxima da privatização da cidade, com a provisão privada de serviços, como a segurança. São também expressão de um pensamento ultraliberal privatista e hostil ao Estado, o que acaba por configurar uma hipercidadania para poucos. Os hipercidadãos podem, segundo as suas conveniências, fazer uso dos serviços públicos, inclusive via judicialização, ou dos privados, para os quais podem pagar.

Para os grupos com maior poder econômico e social, segregar significa conservar os seus privilégios espaciais e sociais por meio do maior valor da terra, mas também pela construção de barreiras físicas e simbólicas que impedem a presença e a permanência dos indesejáveis.

Outros espaços segregados são as ocupações, presentes desde as primeiras favelas até as formas mais recentes, em que terrenos sem uso ou prédios vazios são ocupados por grupos sociais sem moradia e sem poder econômico para consegui-los no mercado formal. Em todos esses casos, as ações desses grupos são um contraponto às formas de planejamento excludentes e ao poder daqueles que transformaram a cidade e a moradia em um negócio lucrativo.

A constituição desses novos espaços segregados convive com os espaços mais consolidados, como as áreas centrais das cidades brasileiras de um lado, e as periferias de outro. No Brasil, os produtores da cidade com maior poder político e econômico, como os gestores públicos e o capital imobiliário, atuam no sentido de fazer com que os espaços centrais sejam cada vez mais exclusivos dos grupos de alto status. Dados do Censo de 2010 mostram como estes grupos passaram a ocupar essas áreas centrais de forma ainda mais exclusiva, resultando na expulsão de grupos com status socioeconômico mais baixo para outras partes da cidade.

Esse processo configura o fenômeno da hipersegregação das elites, identificado nos estudos do Observatório das Metrópoles nas 15 principais regiões metropolitanas brasileiras (Belém, Belo Horizonte, Campinas, Curitiba, Florianópolis, Fortaleza, Goiânia, Manaus, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo, Vitória e Brasília), entre os anos de 2000 e 2010. Ela expressa a maior concentração dos grupos sociais de mais alto status nas áreas centrais, evidenciando o aumento da segregação espacial desses grupos. Esse fenômeno difere daquele observado nos condomínios fechados, em que a autossegregação, ou segregação voluntária de parcelas desses grupos se intensificou nas regiões metropolitanas brasileiras a partir dos anos 1980. As áreas centrais até então eram marcadas por uma relativa heterogeneidade, seja pela proximidade com algumas favelas, seja pela presença de grupos de classe média baixa, resultante dos processos históricos de formação das cidades. No entanto, o que se observa atualmente em ambos os espaços, ou seja, nas áreas centrais e nos condomínios fechados, é a intensificação das formas de exclusão dos diferentes, sejam eles os grupos mais pobres ou os não-brancos, tanto na moradia quanto nos espaços públicos e de consumo e lazer.

As periferias, locais tradicionais de entrada e de moradia dos pobres sem lugar nas áreas da cidade bem-dotadas de infraestrutura, já passaram por várias fases, da extrema precariedade ao que se convencionou chamar de periferia consolidada, aquela dotada dos serviços básicos. Nos últimos anos, essas periferias vêm sofrendo ainda com a ação de grupos criminosos, com a ação violenta e discriminatória da polícia e com a presença das milícias. Se nos condomínios os moradores optam por pagar por serviços exclusivos, nas periferias dominadas pelas milícias os pobres são obrigados a usar os serviços ofertados e explorados por essas organizações. Se nos condomínios busca-se um serviço privado, voltado para os interesses exclusivos e excludentes de um grupo social privilegiado, em algumas periferias a presença precária do Estado é substituída à força pela gestão das milícias.

Uma tendência que permanece é a cor da segregação. Nos territórios pobres, as pessoas são muito mais pretas e pardas do que os territórios onde residem os mais ricos. Estes são predominantes brancos. Tomemos como exemplo um bairro de classe alta e uma favela da cidade Belo Horizonte, Mangabeiras e Cafezal, muito próximos no espaço. No primeiro 92% da população se auto classificou como branca, já no segundo 77% como preta e parda.

Espaços heterogêneos: uma forma de transição?

Entre as áreas centrais e as periferias formaram-se, na última década, espaços marcados por maior mistura de grupos sociais, principalmente grupos médios e de trabalhadores. Essa mistura social em princípio configuraria um espaço menos segregado, em que grupos diferentes, ao residirem próximos, poderiam também partilhar da convivência nos espaços públicos, nas escolas etc. No entanto, a simples exposição ao diferente não produz automaticamente esses efeitos desejáveis de dessegregação. É necessário que as interações de fato ocorram, que vínculos sejam estabelecidos e, para isso, os preconceitos de classe e racial precisam ser cotidianamente combatidos.

O que falta ainda compreender a partir de novas pesquisas e de novos dados é se essa heterogeneidade se manterá ou é apenas o início de um processo de gentrificação, com nova exclusão. Neste caso, a presença dos grupos médios levaria à expulsão dos mais pobres e à maior segregação. A inflexão ultraliberal na economia e na governança do Brasil, a partir de 2016, com aumento do desemprego e da pobreza, pode estar contribuindo para essa expulsão. Na medida em que a renda cai, mais difícil se torna a permanência das famílias em espaços que passam por processo de gentrificação.

A segregação residencial tem a ver, então, com esse poder dos grupos em ocupar de formas desiguais os espaços nas cidades. Essas desigualdades se manifestam tanto na localização da moradia quanto em relação à infraestrutura, aos equipamentos de educação, cultura, lazer e saúde, à mobilidade, à paisagem e ao bem-estar urbano em geral. Quem tem mais poder social e econômico luta para ocupar de forma exclusiva os melhores espaços das cidades, garantindo assim o uso quase monopolizado da infraestrutura e dos serviços de melhor qualidade. O contrário ocorre com os grupos de menor poder econômico, que têm que gastar horas do dia locomovendo-se para o trabalho ou para ter acesso a serviços, além de residirem em locais com infraestrutura mais precária.

Medidas para mitigar a desigualdade social

A retomada dos princípios da reforma urbana, na perspectiva do direito à cidade, é urgente, para fazer frente aos processos de segregação e potencializar formas de mistura social nos territórios urbano-metropolitanos. Redistribuir de forma justa os benefícios da urbanização, fazendo cumprir o direito constitucional à moradia e à mobilidade urbana de qualidade, é urgente e deve ser a diretriz fundamental da política urbana. Reconhecer a posse dos grupos sociais ocupantes de áreas e edificações urbanas ociosas e assegurar o direito coletivo da posse são essenciais para a garantia do direito fundamental à moradia. Do mesmo modo, é importante consolidar e fazer valer a noção de captura de mais-valia fundiária, recolhendo para os cofres públicos a valorização decorrente do investimento estatal e da legislação urbanística. Por fim, a justiça urbana requer decisões democráticas e coletivas acerca da estruturação das cidades, sendo que o local de moradia e as trocas entre grupos sociais, ou seja, uma cidade menos segregada socialmente, são elementos fundamentais do direito à cidade.

Luciana Andrade, professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).  Jupira de Mendonça, professora titular aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ambas são coordenadoras do Núcleo Belo Horizonte do INCT Observatório das Metrópoles.