por André Salata e Marcelo Ribeiro

Nas principais áreas metropolitanas do país vivem aproximadamente 83,8 milhões de pessoas, o equivalente a 39,3% da população brasileira. As regiões metropolitanas concentram os setores mais dinâmicos e modernos da economia nacional, fazendo a renda média das famílias ser significativamente mais alta nessas localidades: R$ 1.378, contra R$ 989 nas demais áreas urbanas e R$ 474 nas áreas rurais. Ao mesmo tempo, as regiões metropolitanas brasileiras são historicamente muito desiguais e, até hoje, podem ser caracterizadas pela distância entre os estratos sociais. No quarto trimestre de 2021 o coeficiente de Gini era de 0,616 no conjunto das metrópoles brasileiras, e de 0,593 no restante do país – vale lembrar que o índice varia de zero até um, e quanto mais alto, maior a desigualdade. Ou seja: apesar de, em média, as famílias nas regiões metropolitanas possuírem rendimentos maiores, sua distribuição é ainda menos igualitária.

As justificativas são conhecidas: um processo acelerado de industrialização e urbanização em alguns polos, em meio a uma estrutura agrária concentrada; um enorme contingente de migrantes afluindo para as grandes cidades em busca de uma vida mais digna; a incapacidade do mercado formal em atender àquele contingente; a concentração de mão de obra nos setores informais e mal remunerados da economia; e a consequente distância em relação àqueles que tiveram condições de se qualificar e ocupar as posições mais bem remuneradas. A realidade mais recente, por sua vez, mostra que, apesar de avanços nos primeiros anos do século, os estratos mais baixos acabaram com o maior prejuízo desde o início da crise econômica em 2015, passando pela pandemia. Como resultado, a desigualdade aumentou.

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Como medida sintética do grau de desigualdades de renda, no gráfico 1 apresentamos o Coeficiente de Gini, que contempla toda a distribuição de rendimentos para o conjunto das regiões metropolitanas brasileiras. E, no gráfico 2, temos uma medida da desigualdade entre os extremos da pirâmide social, que é o resultado da divisão entre a média de renda dos 10% mais ricos e dos 40% mais pobres. Reforçando: quanto mais próximo de um, maior a desigualdade.

Gráfico 1: Coeficiente de Gini do rendimento do trabalho domiciliar per capita – média móvel de quatro trimestres do conjunto das regiões metropolitanas

Fonte: PNADc-IBGE

A análise das desigualdades de renda dos últimos dez anos, no conjunto das regiões metropolitanas do país, demonstra que iniciamos a segunda década do século XXI – entre o 1º trimestre de 2012 até o 4º trimestre de 2014 – numa trajetória positiva, tendo em vista que estava ocorrendo redução das desigualdades de renda. A partir do começo de 2015, no entanto, com as crises econômica e política que se instalam no país, a desigualdade de renda volta a aumentar e se estabiliza em um patamar bastante elevado em 2019. Se no terceiro trimestre de 2015 o Gini era de 0,568, no mesmo trimestre de 2019 ele chegava a 0,603. Considerando-se a escala desse indicador, podemos dizer que é um aumento substantivo em um período de apenas quatro anos.

Ou seja, saímos de um patamar que já era alto, mas com tendência de queda, e elevamos as desigualdades a outro nível. Não à toa, em 2019 a média de renda dos mais ricos chegou a ser 27 vezes maior do que a dos mais pobres. Sem dúvida, um nível de desigualdade que, além de alarmante, coloca enormes obstáculos a qualquer projeto mais inclusivo de cidade.

São Mateus, zona leste da capital paulista (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil).

Mas o pior ainda estava por vir. A pandemia fez não somente a média de renda nas metrópoles alcançar os menores valores na série histórica, como prejudicou os estratos mais baixos de modo muito mais acentuado, provocando o disparo da desigualdade de rendimentos do trabalho. É a pandemia que explica o enorme salto que vemos, tanto no gráfico 1 quanto no gráfico 2, entre o primeiro trimestre de 2020 e o mesmo período de 2021.

Logo nos dois primeiros trimestres da pandemia, a média de renda dos 40% mais pobres de nossas metrópoles encolheu quase um terço (32,1%), caindo de R$ 263 para R$ 178. Enquanto isso, a média de renda dos 10% mais ricos recuou somente 2,5%, de R$ 7.364 para R$ 7.179. Como resultado, a renda média dos mais ricos passou a ser 37 vezes maior do que a dos mais pobres, e o Gini chegou ao valor máximo da série histórica: 0,628. Somente para que o leitor tenha dimensão do grau de desigualdades que estamos tratando, este Gini seria menor apenas do que o da África do Sul, quando comparado com os dados de 157 países disponibilizados pelo Banco Mundial.

Gráfico 2: Razão da média de rendimentos dos 10% mais ricos sobre a média dos 40% mais pobres

Fonte: PNADc-IBGE

Quando analisamos algumas metrópoles separadamente, o quadro muitas vezes é ainda mais grave. Em João Pessoa, por exemplo, a média móvel do Gini no primeiro trimestre de 2021 chegou a 0,729. No Rio de Janeiro, alcançou 0,675; e 0,650 na maior e importante região metropolitana do país, São Paulo. Em conjunto, a queda de rendimentos e o aumento das desigualdades provocados pela pandemia jogaram milhares de famílias para níveis mais baixos de renda. No início de 2021, 29,3% dos moradores das metrópoles brasileiras, ou 24,5 milhões de pessoas, viviam em domicílios cuja renda do trabalho per capita era menor do que um quarto do valor do salário-mínimo vigente. Em Maceió, essa proporção chegou a 48%; em Teresina, a 43%.

Os problemas causados pelo alto índice de desigualdade

A crise provocada pela pandemia veio acentuar uma característica histórica e estrutural das nossas grandes cidades: seu elevado nível de desigualdades. O resultado foi facilmente percebido por qualquer morador dessas localidades, com o visível aumento de pedintes nas ruas, vendedores ambulantes nos sinais, famílias em situação de vulnerabilidade e assim por diante.

Há hoje um crescente consenso, na bibliografia mais especializada, de que níveis elevados de desigualdade trazem consequências indesejadas para a sociedade. Até mesmo o Banco Mundial e o FMI concluíram recentemente que patamares mais altos nesse quesito prejudicam as perspectivas de crescimento econômico sustentável. Pensemos, por exemplo, no talento de milhares de jovens nascidos em famílias de baixa renda, nas periferias e favelas de nossas grandes cidades, que a sociedade brasileira desperdiça a cada geração. Basta dizer que hoje, mesmo em São Paulo, na metrópole economicamente mais desenvolvida do país, quase 18% das crianças de até 5 anos de idade vivem em domicílios cuja renda per capita do trabalho é inferior a um quarto do salário-mínimo.

A despeito do quão talentosas e esforçadas elas sejam, os obstáculos que encontrarão ao longo de suas trajetórias serão muito maiores do que aquelas que nascem no estrato mais rico da mesma região metropolitana, cuja renda média é de, aproximadamente, R$ 8 mil per capita.

Recursos e poder estão concentrados em poucas mãos

Além disso, estudos também sugerem que a desigualdade pode acirrar os conflitos sociais e, assim, comprometer a estabilidade política. Não faltam episódios recentes nas grandes cidades latino-americanas para ilustrar esse ponto: 2013 no Brasil, 2019 no Chile, 2021 na Colômbia e assim por diante. E, finalmente, níveis elevados de desigualdade permitem a concentração de recursos e poder nas mãos de pequenos círculos sociais capazes de direcionar as ações e verbas do Estado aos seus interesses. Em nossas grandes cidades, isso se traduz no frequente descaso de governos e prefeituras com as áreas periféricas – basta lembrar que quase metade dos brasileiros ainda não tem acesso a saneamento básico –, em oposição à atenção e investimentos normalmente dedicados aos locais de moradia dos estratos mais altos.

Enfrentar a questão das desigualdades, portanto, é não somente um imperativo moral, derivado de ideias modernas e civilizatórias de justiça social, mas também condição necessária para que todos nós possamos desfrutar de uma melhor qualidade de vida e de um futuro mais próspero em nossas grandes cidades. A crise social provocada pela pandemia torna essa tarefa ainda mais urgente.

André Salata é professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) Observatório das Metrópoles.

Marcelo Ribeiro é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) Observatório das Metrópoles.

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A série Reforma Urbana e Direito à Cidade: os desafios do desenvolvimento apresenta reflexões e proposições sobre um amplo e diversificado conjunto de temas relacionados com a retomada do histórico projeto de reforma urbana e o direito à cidade, diante dos desafios das múltiplas crises – econômica, social, política e sanitária – presentes no atual momento da sociedade brasileira.