Por Betânia Alfonsin

A descaracterização e desdemocratização da política urbana brasileira, movimento observado nacionalmente desde 2016, em um efeito de refração política, teve claros reflexos nas cidades brasileiras (ALFONSIN, 2020). O município de Porto Alegre se tornou uma excelente ilustração desse movimento e é um caso bastante revelador de que há um padrão nos projetos e iniciativas do mercado no último período. No caso da capital gaúcha, esse padrão revela uma traição das diretrizes da política urbana que o Estatuto da Cidade estabeleceu.

Ao invés de recuperar para a coletividade a valorização imobiliária que decorre dos investimentos públicos, o que se vê no município são isenções e renúncia de receitas, como acontece no projeto de revitalização do 4° Distrito, antiga área industrial da cidade e agora forte candidata à gentrificação e expulsão da população de baixa renda que ali se instalou.

A cidadania também assiste estarrecida o município conduzir uma política que ao invés de zelar pelo modelo de planejamento urbano preconizado pelo Estatuto da Cidade e estabelecido pelo PDDUA – Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano-Ambiental, aprova alterações do regime urbanístico em projetos que desconsideram pactos construídos coletivamente, mas muito convenientes aos interesses dos atores ligados ao mercado imobiliário da cidade. A fragmentação da revisão do plano diretor do município, com projetos de lei pontuais e focados em porções do território, se concentra na Orla do Guaíba, revelando que muito mais do que promover a revisão periódica do plano diretor da cidade, o governo municipal se apressa em fornecer aos empreendedores o regime urbanístico que necessitam para viabilizar seus projetos imobiliários.

Outro deslocamento perverso é aquele que ao invés de garantir o direito à cidade e usufruto coletivo dos bens comuns na cidade, submete a população à apropriação privada desses bens, como é o caso do Cais Mauá, objeto de cobiça pela beleza e localização estratégica da orla. Para este espaço foram reservados requintes de crueldade urbanística, com impactos ambientais e na paisagem que causarão danos irreversíveis à cidade. Outra manifestação desse movimento que promove a mercantilização da cidade é o Parque da Redenção, histórico local de encontro da diversidade cultural, social, étnica e sexual da cidade, agora considerado pelo governo como um “parque deficitário”, como se isso fosse plausível juridicamente. Trata-se de uma aceleração da privatização dos espaços comuns e ambiências urbanas, além dos símbolos, da paisagem, dos próprios nomes dos lugares, violentamente apropriados, sem qualquer consulta minimamente decente à população.

Ainda mais triste para a cidade que tornou o Orçamento Participativo internacionalmente conhecido como uma política pública de incorporação da participação popular nos processos de tomada de decisão sobre as finanças municipais, é ver que a cidade também migrou da gestão democrática a uma prática de silenciamento patrocinada justamente pelos órgãos que deveriam promover e incentivar a participação popular. Em Porto Alegre silenciam microfones em audiências públicas, bem como o tempo do relógio corre mais rápido para algumas lideranças comunitárias do que para os representantes de segmentos sociais ligados ao mercado. Visualizações de lives transmitidas pelo Youtube são contabilizadas como números que expressam “participação popular”, em uma prática de fraude à gestão democrática da cidade.

Todas essas tendências de descumprimento das diretrizes da política urbana previstas no Estatuto da Cidade revelam um oportunismo macabro do mercado imobiliário, que se aproveitou da pandemia para passar “boiadas urbanísticas” em todo Brasil, acelerando um movimento ligado à inflexão ultraliberal (RIBEIRO, 2020) da política urbana e que já estava em curso. Em Porto Alegre esse movimento se acelerou muito no período pandêmico, mas se agrava ainda mais quando se observa que mal iniciou a campanha eleitoral e projetos de alterações pontuais da legislação urbanística da cidade retornam à pauta de votação na Câmara de Vereadores. Note-se que justo quando a cidadania se volta para o plano nacional (já que estamos diante da mais importante eleição presidencial da história da República) e a sociedade civil dirige suas energias para influenciar de alguma forma o pleito, a tática oportunista do mercado imobiliário, com a chancela do arranjo político local, se apresenta sob a forma de novos e mais escandalosos projetos, como a recente alteração do regime urbanístico da região do 4º Distrito.

É preciso, no entanto, salientar duas conexões:

A primeira entre esse momento de mudança do padrão de acumulação capitalista no Brasil com o que acontece localmente, e a forma como isso aterriza no território, no caso de Porto Alegre com os projetos imobiliários pontuais que estão sendo aprovados de forma autoritária e à revelia do plano diretor. Note-se que esse movimento se observa nacionalmente, em muitas capitais e cidades situadas em regiões metropolitanas, revelando uma sincronicidade que não tem nada de casual. Trata-se de um modus operandi do capital imobiliário no Brasil nessa quadra da história.

Se é verdade que os ataques são sincronizados nacionalmente, a segunda conexão a destacar é entre as lutas urbanas: os territórios e populações atacados estão conectados e essa ligação precisa ser percebida, debatida, assumida e agenciada pelos sujeitos, pois a resistência ganha quando se constrói em comum. No caso de Porto Alegre, nota-se que os ataques são muito significativos, mas da mesma forma as resistências são muito potentes. Com todas as fragilidades e dificuldades do período, há lideranças comunitárias e populações se mobilizando para garantir a participação popular e não perder direitos urbanos.

O que se observa em Porto Alegre, no atual momento, desperta a certeza de que é preciso pensar o direito à cidade em sua dimensão instituinte (SANCHEZ RUBIO, 2022). O direito à cidade não é apenas o que está inscrito no Estatuto da Cidade como diretriz da política urbana, mas antes é movimento que se instaura, é a forma como esse direito se reinventa em cada território, em cada resistência aos ataques que ele sofre nesse contexto de inflexão ultraliberal da política urbana.

A dimensão instituinte do direito à cidade se manifesta, expressa e recria, territorialmente, topicamente, articulada às lutas dos movimentos sociais urbanos, em cada cidade. Para além da reconstrução da política urbana, do Ministério das Cidades e dos mecanismos de democratização da gestão, medidas políticas cuja necessidade já foi suficientemente diagnosticada, talvez o grande desafio do movimento pela reforma urbana no próximo período seja o de redescobrir a força da assembleia (BUTLER, 2022), a reunião dos corpos e da diversidade que desperta a potência da conexão entre as lutas (GAGO, 2020), tanto no eixo nacional-local, como no eixo local-local, rompendo com a fragmentação imposta pelo capital, para que sejamos capazes de instaurar contra-tendências nos territórios e instituir o direito à cidade.

Betânia Alfonsin é Doutora em Planejamento Urbano e Regional. Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Direito Urbanístico e Direito à Cidade da FMP. Pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Porto Alegre.