Por Luciano Fedozzi

A redemocratização dos anos 1980 abriu um novo ciclo favorável ao aumento da participação cidadã nas políticas públicas. A marca do envolvimento de atores civis e movimentos sociais esteve presente na própria elaboração da nova Constituição, seguida pela promulgação de diversas leis importantes, a exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), da Lei Orgânica da Saúde (1990), da Lei Orgânica da Assistência Social (1993) e do Estatuto da Cidade (2001). Essas áreas de políticas, assim como a educação fundamental, foram criadas prevendo-se a responsabilidade compartilhada da União com os entes subnacionais e respectivas instâncias de participação, incluindo-se os municípios que ganharam status federativo inédito no país.

Além dos Conselhos de Políticas Públicas e de Direitos – que em alguns setores estão presentes na quase totalidade dos municípios, Estados e no Governo Federal, as Conferências de Políticas Públicas (de caráter nacional, regional ou local) tornaram-se importantes instâncias de debates e deliberações públicas. Juntamente com os Orçamentos Participativos (OP), surgidos no final dos anos 1980, os Conselhos e as Conferências representam as principais inovações democráticas do Brasil. O conjunto dessas modalidades de participação social constituem as Instituições Participativas (IPs) que, ao lado e simultaneamente às instituições tradicionais da representação política, permitem a mediação socioestatal por meio de interação continuada e previsível dos atores societários e estatais, em torno de políticas públicas e decisões governamentais. Essas instâncias ampliaram a pluralização da representação social e alargaram a democracia brasileira para além do elitismo como modelo político.

Após o primeiro período de grandes expectativas, sobreveio por parte de movimentos sociais uma percepção crítica e certa decepção quanto a eficácia da participação institucionalizada. Em algumas áreas, movimentos sociais entenderam que melhores resultados seriam obtidos por meio do contato direto ou informal com o governo federal.

No momento da “crise de meia idade” das Instituições Participativas, o país foi surpreendido pelos protestos de junho de 2013. Nessa conjuntura crítica, o governo apresentou a ideia da Política Nacional de Participação Social (PNPS), por meio do Decreto Presidencial 8.243/2014, de Dilma Rousseff. Todavia, tal decreto foi engolido pela efervescência conservadora que passou a dominar a agenda política após as acirradas eleições de 2014. Apenas uma semana após a promulgação do Decreto, o Congresso Nacional aprovou o projeto da direita que suspendeu seus efeitos (PDC 1.491/2014).

No governo Bolsonaro, o país entrou em franco processo de desdemocratização – fenômeno de enfraquecimento das democracias no mundo – com a regressão de políticas em quase todos os setores. A destruição atingiu as instituições de participação por meio do Decreto nº 9.759, de 11 de abril de 2019, que extinguiu a PNPS, de Dilma Rousseff. Foi decidida a extinção de colegiados, menos os criados a partir do próprio governo Bolsonaro.

Retomar a participação para construir a democracia de maior intensidade

No contexto atual em que o próprio orçamento público está ameaçado de sequestro permanente pelo conservadorismo privatista-patrimonialista da maioria do Congresso Nacional (orçamento secreto), a reconstrução nacional exige retomar a participação popular como condição para superar o legado da virada autoritária-neoliberal. O Brasil acumulou longa trajetória de participação institucionalizada. No momento em que se vislumbra uma nova vitória do campo democratizante-popular por meio de Lula, trata-se de recolher o legado da fase anterior e projetar, com amplo envolvimento da sociedade, um caminho sobre o que deve ser retomado e o que pode e deve ser inovado para aprofundar a democracia e realizar as transformações necessárias à construção do projeto de desenvolvimento democrático, popular e inclusivo.

Sem pretensões de contemplar a maioria das questões problematizadas pelos estudos e os movimentos e atores civis, cabe destacar alguns pontos para o debate sobre esta retomada.

1 – Superar a dicotomia “ruas ou instituições”

Democratizar a elaboração, execução e o controle das políticas públicas exige o engajamento formal e informal de atores sociais, estatais e políticos. A participação institucional é uma interação formal Estado-sociedade e a participação informal diz respeito aos repertórios encontrados pelos atores da sociedade civil para serem escutados e, assim, influenciarem as decisões dos Executivos e Legislativos. Em geral, ambas as modalidades (formal e informal) estão conectadas, já que a participação se dá por representação de causas, demandas e perspectivas de atores sociais, na dupla chave da ação perante o poder e no poder de Estado. O aprofundamento ou a radicalização da democracia depende, além de partidos e projetos políticos, de movimentos sociais que expressem os anseios das classes subalternas, portanto, de uma sociedade civil organizada engajada e mobilizada. Esta condição – fundamental para a correlação de forças pró-reformas democratizantes – não só não é contraditória com a participação institucional de atores civis, como pode e deve se beneficiar dela. Participação institucional não significa, a priori, cooptação, tutela ou captura do Estado e de partidos políticos. Isso não quer dizer que a captura não possa ocorrer, mas na longa experiência brasileira a dicotomia Estado-sociedade civil foi ultrapassada pela prática da mútua constituição. Por isso, seria prejudicial retornar ao pêndulo da oposição entre ação social versus participação institucional, que esteve presente na luta democrática do período da ditadura. O projeto democratizante requer transformações no Estado e na sociedade. Por outro lado, a ação institucional não deve diminuir a importância da independência dos movimentos sociais e de sua capacidade de auto-organização para exercer as pressões necessárias às transformações. É claro que esta dupla tarefa de participar institucionalmente e fortalecer a ação coletiva na sociedade impõe custos desiguais para aqueles atores com menos recursos a serem mobilizados, mas não significa que tenha sido um erro a criação de instâncias da democracia participativa no Brasil.

2 – Recalibrar os horizontes normativos do papel das instituições participativas e apontar para a ampliação das suas possibilidades democratizantes

Decorre do ponto anterior a necessidade de valorizar na medida certa a ação institucional da participação. Não se pode perder de vista que houve conquistas nada desprezíveis alcançadas pela participação, principalmente nas políticas sociais, como saúde, assistência social, educação, meio ambiente e proteção às crianças e adolescentes. Os ganhos apontam para a democratização da formulação de políticas públicas, a inclusão de grupos marginalizados, a redistribuição dos recursos e das prioridades para setores e grupos mais vulneráveis, e a ampliação do controle social sobre o Estado. Ao mesmo tempo, na retomada da democracia participativa em nível federal é necessário avaliar até que ponto as principais limitações apontadas são decorrentes de obstáculos estruturais do Estado e da sociedade brasileira, que impedem mudanças mais profundas, e até que ponto o tamanho da decepção com a participação também não se deve a uma sobredeterminação normativa (expectativa de resultados) quanto ao papel que ela pode desempenhar na democracia brasileira. É necessário fixar parâmetros mais realistas sobre os objetivos da ação institucional e, assim, avaliar as responsabilidades de cada ator do projeto democrático-popular na interação Estado-sociedade. A questão do poder de decisão compartilhado nas instâncias precisa ser retomada, a fim de aumentar a motivação, o engajamento e os benefícios da influência popular e, assim, contrabalançar a pressão dos setores dominantes contrariados pelas políticas públicas.

3 – Ampliar o escopo da democratização das áreas de políticas públicas

O legado da fase anterior permite identificar, conforme o Ipea, a seletividade das áreas de políticas que estiveram sujeitas ao escrutínio da participação social. Setores de proteção social foram privilegiados enquanto as áreas de desenvolvimento econômico e infraestrutura permaneceram intocadas, quase impermeáveis à influência dos atores das classes populares e povos originários. Diante disso, é necessário diminuir a fragmentação da rede participativa e ampliar as áreas de políticas sob incidência popular na construção de alternativas ao modelo neoliberal e extrativista.

4 – Ampliar a participação cidadã com as novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs)

As novas tecnologias virtuais estão ampliando as possibilidades de informação e comunicação. Mas seria uma decisão simplista (e um tanto fetichista) substituir a participação baseada na representação de grupos e setores da sociedade organizada que ocorre nas IPs pelas formas diretas através das tecnologias digitais. As TICs estão mostrando também novos dilemas e limites para uma participação responsável com a coletividade. Estes dilemas e desafios, entretanto, não devem impedir a sua utilização no engajamento da cidadania, em especial das juventudes e pessoas não vinculadas às organizações sociais. As IPs precisam usar os meios digitais, mas como não contam com os meios próprios, precisam de recursos públicos para a criação das plataformas de participação. Esses passos precisam constar do planejamento das IPs a fim de que, juntamente com o governo, seja criada uma dinâmica sinérgica entre as formas semidiretas de participação pelas IPs e as formas diretas pela mediação digital. Grupos de pesquisa sobre o uso das TICs podem contribuir neste objetivo.

5 – Apoiar e fortalecer a participação local

Nos últimos 30 anos grande parte das inovações democráticas foram realizadas nos municípios. Mas as mudanças no país, desde os anos 2000, diminuíram as oportunidades da participação local. Apesar dos avanços previstos pelo Estatuto da Cidade (2001), as últimas décadas foram marcadas pelo crescimento do neoliberalismo no desenvolvimento urbano do país, aumentando as desigualdades socioespaciais e as formas de exclusão. E os Orçamentos Participativos (OP), após crescimento numérico na década de 1990, estão em forte declínio. O conjunto dessas transformações impôs sérios bloqueios ao ciclo participativo anterior. A sua possível retomada dependerá, por isso, da formação de atores sociais e políticos dispostos a reconstruir o projeto democrático-popular em nível local. O governo federal deve apoiar e incentivar a participação nas cidades, adotando condicionantes participativos locais para o repasse de recursos federais de infraestrutura, habitação e saneamento (e áreas afins), e também apoiar os OP, corrigindo assim a falha grave dos governos Lula/Dilma sobre isto.

6 – Instituir mecanismos participativos no ciclo do planejamento e orçamento

A articulação entre as instâncias participativas e a programação orçamentária é fundamental para aumentar a efetividade da participação. No primeiro mandato de Lula (2003-2006), o ensaio de “Orçamento Participativo” foi apenas simbólico porque não resultou em influência popular real. Tampouco nas gestões petistas houve avanços para conjugar as decisões das IPs e a previsão orçamentária dos programas e projetos dos ministérios. Apesar de ser um objetivo de alta complexidade operacional e política, o aumento da efetividade da participação requer uma metodologia política que permita a escolha das prioridades orçamentárias, algo que deve se dar em equilíbrio com as instâncias nacionais e estaduais de representação política. Considerando o sequestro do orçamento público pelo bloco fisiológico do Congresso (Centrão), articulado com o apoio a Bolsonaro (orçamento secreto), é positiva a disposição de Lula em democratizar o debate orçamentário com a sociedade, objetivo este que precisa perdurar após as eleições e que deve contar com o apoio decidido de movimentos, atores da sociedade civil e grupos acadêmicos.

7 – Massificar a informação e a prestação de contas da participação

A prestação de contas do trabalho das IPs deve merecer maior atenção, já que foi superficialmente tratado no ciclo participativo anterior. A sociedade conhece pouco o ativismo realizado institucionalmente, suas decisões e resultados, salvo algumas boas exceções. Não se trata de “marketing” (típico de propagandas dos governos em geral), mas do fato de que a informação em larga escala requer divulgação dos resultados do trabalho voluntário realizado por milhares de pessoas e organizações sociais. O trabalho por vezes heroico de representantes sociais junto ao Estado não pode ficar restrito a uma vanguarda engajada, ele precisa ser conhecido pela população. Uma política nacional nos meios de comunicação de massa e nas plataformas digitais pode desempenhar um papel decisivo na legitimidade da participação cidadã, valorizando-a como prática democrática de interesse público e caminho para avançar na sociedade. Esta política somente poderá ser viabilizada com recursos públicos, seja via orçamento ou patrocínio de empresas públicas. O envolvimento dos atores da rede participativa no planejamento da política de comunicação é fundamental para o cumprimento dos objetivos de informação e de prestação de contas das instituições participativas existentes, uma exigência da accountability social.

Cabe dizer, a título de considerações finais, que a participação no Estado e na sociedade, por meio das formas de ação das classes populares, é critério decisivo para a fase de reconstrução do país. Mais do que isto, somente a forte participação, no bojo do projeto democrático-popular, poderá fazer com que a reconstrução se direcione às transformações que interessam às maiorias constituídas pelas camadas populares.

*Luciano Fedozzi  é professor titular de Sociologia da UFRGS, pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles e coordenador do GT Democracia Participativa, Sociedade Civil e Território do CEGOV (UFRGS).