Por Demóstenes Moraes e Lívia Miranda

A inflexão ultraliberal e o avanço do conservadorismo-autoritário no Brasil têm impossibilitado que parte significativa da população participe dos debates sobre os rumos das cidades e restringido seu acesso a recursos, serviços e oportunidades fundamentais à reprodução individual e social.

Uma crise urbana multidimensional, resultante da associação de condicionantes estruturais a múltiplos fatores conjunturais, sociais, econômicos, políticos, ambientais e sanitários agravou tal quadro. Entre as diversas expressões dessa crise é possível mencionar algumas muito evidentes nas cidades e aglomerações metropolitanas: os sucessivos desastres socioambientais, intensificados pela combinação de mudanças climáticas, urbanização precária e ausência de políticas urbanas; o aumento da forme e da insegurança alimentar; e o crescimento da população em situação de rua.

Se a implementação de políticas urbanas redistributivas e inclusivas nas cidades brasileiras já era fundamental face o histórico de desigualdades e injustiças socioespaciais e ambientais, nesse contexto de crise, se configura como uma necessidade ainda mais urgente e inadiável. Porém, há muitos obstáculos a enfrentar. Estas barreiras estão relacionadas às reformas neoliberais recentes e à ampliação do conservadorismo-autoritário na gestão pública que acarretaram: o desmonte de estruturas estatais e das políticas sociais e urbanas; e a reversão dos avanços institucionais-legais de âmbito federal, relacionados ao desenvolvimento urbano – promovidos pelos governos petistas no ciclo desenvolvimentista de 2003 a 2014.

Um projeto de reconstrução para as cidades brasileiras é, reconhecidamente, necessário, dada a importância destas para a recuperação econômica do país e, fundamentalmente, para a vida das pessoas, mas é imprescindível que este projeto tenha um horizonte de transformações estruturais a partir da democratização radical das decisões sobre as cidades. Nesse sentido, dois pontos de partida parecem fundamentais, a saber:

  • A refundação do Estado a partir da construção de um novo marco social-civilizatório que recupere os fundamentos constitucionais, que promova justiça social e que se expresse efetivamente na democratização do orçamento público e em políticas de estado redistributivas e inclusivas. O objetivo é enfrentar as causas estruturais das desigualdades e injustiças multidimensionais relacionadas, principalmente, ao capitalismo, ao patrimonialismo, ao racismo e ao patriarcado; e
  • O reconhecimento das pessoas oprimidas e discriminadas como sujeitos de direitos e como imprescindíveis participantes e decisores sobre as questões e políticas públicas nas cidades.

Há muito a fazer

Apesar de urgente e fundamental, não bastará aos segmentos historicamente oprimidos, em uma conjuntura política mais favorável, serem incluídos no orçamento público e terem acesso a instâncias de gestão participativa e a políticas, programas, serviços e oportunidades nas cidades. Nem tampouco será suficiente habilitá-los como consumidores e empreendedores de forma dissociada da promoção da cidadania e dos direitos, reforçando algumas das condições econômicas e ideológicas que contribuem para as desigualdades e injustiças que os afetam diretamente.

Os espoliados precisam, a partir de uma visão crítica de suas realidades, participar efetivamente das decisões a respeito das questões de interesse público e social e das políticas públicas nas cidades, caso se pretenda mudanças mais duráveis.

Os desafios para tal reconstrução-transformação são imensos, tendo em vista que os processos de tomada de decisão sobre as cidades e sua produção sempre foram e estão, cada vez mais, concentrados por forças com maior poder econômico e político, orientadas pelo neoliberalismo e promotoras do rentismo-extrativismo urbano.

A tais questões, soma-se um contexto de fragmentação social e de precariedade e desmotivação dos grupos historicamente oprimidos e discriminados para a participação na discussão sobre os temas de interesse público e social a partir de instâncias de gestão democrática, tanto em decorrência das lutas pela sobrevivência, quanto pela justificada descrença em relação ao estado, considerando as omissões e as ações violentas que sempre sofreram.

Em relação aos territórios populares, que abrigam parte significativa dos segmentos espoliados, é importante reconhecer que antes do desmonte das políticas urbanas promovidos após o golpe parlamentar de 2016, foram realizados investimentos públicos federais sem precedentes na prevenção e gerenciamento de risco de desastres e na urbanização e regularização fundiária de assentamentos precários.

O Programa de Aceleração do Crescimento, nesse contexto, em sua modalidade Urbanização de Assentamentos Precários (PAC-UAP), implementado a partir de 2007, tornou-se o maior programa nacional de urbanização desses assentamentos, tendo um investimento de mais de R$ 29 bilhões de reais e alcançando até 2016, aproximadamente, 2 milhões de famílias. Estes expressivos resultados, no entanto, foram e são, obviamente, insuficientes frente à dimensão da precariedade nas cidades brasileiras.

Somente uma política de estado permanente, com intervenções integrais e integradas quanto às dimensões infraestruturais, urbanísticas, ambientais e sociais poderia apontar na direção de mudanças desse quadro de precariedade. Além disso, as articulações com outras políticas públicas (saúde, educação, cultura, meio ambiente, assistência técnica, gerenciamento de risco, defesa civil, mobilidade, economia, segurança etc.) e com as iniciativas dos moradores e de entidades atuantes nos territórios populares seriam fundamentais à promoção de direitos e da cidadania.

O reconhecimento do abandono histórico e do tratamento discriminatório e violento promovidos por órgãos e agentes públicos nos territórios populares, prevalecentes até hoje, é imprescindível para a reconstrução da atuação estatal. Estes assentamentos, porém, não deveriam se constituir apenas em objetos de projetos e intervenções urbanísticas e sociais, mas reconhecidos em sua complexidade e multidimensionalidade e, também, a partir das identidades, práticas e iniciativas das pessoas que lá vivem. Todos estes apontamentos estão muito distantes de realização no momento, mas há esperança no horizonte!

Construir a unidade na diversidade para transformar as cidades

As desigualdades estruturais e a crise urbana múltipla vêm mobilizando movimentos sociais, coletivos, articulações e redes para ações solidárias nos territórios populares, para as lutas urbanas, entre elas a luta contra os despejos, e para a construção coletiva de uma plataforma por direitos nas cidades, pela reforma urbana e pelo direito à cidade.

Fruto desta mobilização, foi realizada, em junho desse ano, em São Paulo, a Conferência Popular pelo Direito à Cidade, com a participação de cerca de 700 pessoas de todo o Brasil, representando mais de 600 movimentos e entidades sociais, para a elaboração de propostas que integraram uma plataforma pelo direito à cidade. Essa conferência foi precedida por mais de 200 eventos preparatórios em todos os estados brasileiros. É importante registrar que a plataforma resultante desta mobilização abordou temas para além do campo do desenvolvimento urbano, como arte, cultura, racismo, sexismo, segurança alimentar, entre outros, alargando as visões e concepções sobre o direito à cidade.

Toda a mobilização sociopolítica em torno da Conferência foi compreendida, pelos movimentos sociais, coletivos e redes que a realizaram, como parte de um processo de construção de uma unidade para as lutas urbanas em meio à diversidade de causas e práticas sociopolíticas para romper com a lógica de mercantilização e de espoliação nas cidades.

Os debates, propostas e as articulações a partir da Conferência Popular pelo Direito à Cidade apontam que a reconstrução das cidades brasileiras e das políticas urbanas requer um sentido sociopolítico comum sobre a justiça em suas várias dimensões (social, espacial, ambiental etc.) e a democratização radical da gestão pública nas cidades por meio de processos de participação amplos, plurais e inclusivos.

Se a pretensão é promover a transformação estrutural das cidades brasileiras, algumas questões e frentes de ação, entre várias, merecem atenção:

  • A necessidade de aglutinar forças e construir unidade para as lutas políticas a partir do direito à cidade é fundamental para confrontar ao mesmo tempo o poder do atraso, o ideário neoliberal e o rentismo-extrativista que predominam na produção das cidades; ainda mais em um contexto de desmonte de políticas públicas, de negação de direitos e de ataques à democracia.
  • A construção e promoção de estratégias articuladas e de intensificar as ações simultâneas:
    • de mobilização e incidência política diretas (protestos, manifestações por direitos, por políticas públicas etc.);
    • de formação dialógica nas bases (sobre o orçamento público, as lutas e os direitos nas cidades, as ferramentas digitais etc.);
    • de comunicação nos diversos meios para a disputa de sentidos e narrativas sobre os rumos da urbanização, a partir das realidades concretas das pessoas e de seus territórios afetados por desastres, segregações etc.; e
    • institucionais, com a recriação de sistemas e políticas, leis, planos etc. que articulem os âmbitos nacional e local e que priorizem os territórios populares. É fundamental a retomada contextualizada da construção participativa dos sistemas e políticos nacionais de desenvolvimento urbano e de participação social.
  • O fortalecimento das lutas para recuperar e ampliar o controle social sobre planos, projetos, orçamentos e investimentos nas cidades, pela promoção de planejamentos e orçamentos participativos nas cidades, com prioridade aos territórios populares e à participação das pessoas discriminadas e vulnerabilizadas. Nessa direção, será importante a promoção de iniciativas populares de cogestão e autogestão de programas e projetos públicos nas cidades.

Serão imprescindíveis à reconstrução e à democratização da gestão pública das cidades brasileiras, portanto, o protagonismo e envolvimento direto e autônomo da população negra, das mulheres, das pessoas LGBTQIA+, de indígenas, comunidades tradicionais, de trabalhadoras e trabalhadores informais e precarizados, de moradores das periferias e favelas entre vários segmentos e identidades. Somente os que vêm sofrendo, historicamente e de forma sobreposta, com as segregações, exclusões, espoliações e discriminações que lhes são impostas no meio urbano poderão pôr fim a elas.

Tal protagonismo deverá, portanto, se expressar nas decisões e na cogestão das políticas e programas públicos urbanos, da formulação até a implementação, sempre com a pretensão de promover justiça e transformações estruturais nas cidades e metrópoles, tendo o direito à cidade como horizonte de formulações e ações para a emancipação social.

Demóstenes Moraes é professor da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e pesquisador do Núcleo Paraíba do INCT Observatório das Metrópoles.

Lívia Miranda é professora da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Coordenadora do Núcleo Paraíba do INCT Observatório das Metrópoles.