por Ana Lúcia Britto e Suyá Quintslr
O ano de 2018 marcou o ressurgimento da questão da privatização do saneamento na agenda governamental. Assim, dois anos depois do impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT), a edição de duas Medidas Provisórias (MP) consecutivas no governo Michel Temer (MDB) ilustrou a virada neoliberal almejada com a retirada do PT do poder executivo nacional. O objetivo fundamental era alterar a Política Nacional de Saneamento Básico (PNSB), definida pela Lei 11.445 de 2007, permitindo a ampliação da participação do setor privado na gestão dos serviços.
Apesar de as MPs terem sido arquivadas em maio de 2019, a agenda neoliberal foi aprofundada no governo de Jair Bolsonaro (PL), quando líderes de partidos conservadores da base do governo apresentaram projetos de mudança do marco regulatório do saneamento com os mesmos princípios. Contudo, em virtude de uma manobra do Governo Federal para acelerar a tramitação, a mudança na PNSB se concretizou a partir de um Projeto de Lei do poder executivo que, tendo sido aprovado em 15 de julho de 2020, em sessão remota da Câmara dos Deputados, no início da pandemia da Covid-19 no Brasil, deu origem à Lei 14.026 de 2020.
A aprovação da lei vem aportando mudanças rápidas e profundas no setor de saneamento básico, especialmente por criar as bases para a ampliação da participação privada, ao mesmo tempo em que busca inviabilizar a gestão pública.
Assim, se até 2020, cerca de 70% da população brasileira era atendida com serviços de água por empresas de economia mista que têm como controladores os Estados – as Companhias Estaduais de Saneamento Básico (CESB) –, essa realidade já passou por grande modificação com os primeiros leilões realizados, segundo as novas regras, nos Estados do Alagoas e do Rio de Janeiro. Antes das mudanças no Marco Regulatório do saneamento básico, a concessão dos serviços a uma empresa controlada por outro ente federativo eram dispensados de licitação e regulados por contratos de programa, no âmbito da gestão associada de serviços públicos.
A vedação dos contratos de programa para saneamento e a obrigatoriedade de licitação foram os principais mecanismos de incentivo à concessão dos serviços a empresas privadas. Ainda que os contratos vigentes não sejam automaticamente cancelados, um veto presidencial à Lei aprovada pelo Congresso impediu suas renovações. Além disso, foi estabelecido que todos os contratos vigentes devem ser aditivados para incluir as metas de atendimento de 99% da população com serviços de abastecimento de água e de 90% com serviços de esgotamento sanitário (coleta e tratamento) até o final de 2033. As companhias estaduais com contratos em curso devem também comprovar a capacidade econômico-financeira, seja por meio de recursos próprios ou por contratação de dívida para o atendimento das metas estabelecidas. Vale notar que, para os prestadores privados que assumiram a prestação dos serviços via licitação antes da aprovação da lei, tal comprovação é opcional, só ocorrendo quando se deseja aditivar os contratos para alcançar as metas de universalização.
Outro aspecto importante introduzido pela Lei 14.026 é a nova regionalização do saneamento. Diferentemente do modelo estabelecido na década de 1970 pelo PLANASA e adotado pelas CESBs, que tinham os Estados como territórios de atuação, a mudança na legislação introduziu novas formas de regionalização:
Regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões, compostas por municípios limítrofes e instituídas por leis complementares dos Estados;
Unidades regionais de saneamento básico, compostas por municípios que não precisam necessariamente serem vizinhos e que são instituídas mediante leis ordinárias dos Estados;
Blocos de referência, também constituídos por municípios não são necessariamente limítrofes, estabelecidos pela União, mas formalmente criados por meio de gestão associada voluntária dos titulares.
Com exceção das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões – que já eram previstas em lei –, as demais formas de agrupamento de municípios têm como objetivo principal garantir a viabilidade econômica dos novos prestadores, que passam a atender áreas que não compartilham infraestruturas de saneamento ou problemas comuns. Nesses casos, a adesão dos municípios é voluntária. A despeito da não obrigatoriedade, a adesão aos blocos regionais é uma condição para acesso a recursos federais, podendo a não adesão, portanto, ser sancionada com a perda de acesso a recursos.
Apesar desta limitação, a prestação direta do saneamento resta como a única forma isenta de licitação para os municípios que desejarem manter os serviços no âmbito da gestão pública. Nesses casos, porém, o estrangulamento dos serviços autônomos se dá via ausência de fontes de financiamento, uma vez que a União passou a priorizar empréstimos a entes privados em detrimento dos públicos. Considerando que existem 1.510 municípios com prestação direta, onde vivem mais de 35 milhões de pessoas, é fácil imaginar que essa fatia do “mercado” despertou também o interesse do setor privado.
Aqui, cabe reafirmar que os recursos federais que estão sendo orientados para a iniciativa privada, via de regra, têm origem nos impostos pagos pela população ou em poupanças e/ou contribuições dos trabalhadores – a exemplo do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), gerido pela Caixa Econômica Federal, e do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), gerido pela BNDES.
Ao mesmo tempo em que diferentes setores se mobilizavam para garantir as mudanças regulatórias, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) assumiu a liderança da condução das privatizações de saneamento a partir do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) criado pela Lei nº 13.334 de 2016. Nesse ano, o BNDES anunciou que 18 Estados tinham manifestado interesse em aderir ao PPI de saneamento. A partir de então, o banco passou a atuar como escritório de projetos dos governos estaduais, contratando consultorias para elaboração de diagnósticos e estudos técnicos, além de iniciar a elaboração de uma proposta de modelo de desestatização.
Em dezembro de 2019, em evento no Rio de Janeiro intitulado “BNDES com ‘S’ de Social e de Saneamento”, foram apresentados os projetos em curso (Acre, Alagoas, Amapá e Rio de Janeiro). Nos modelos, os Estados mais populosos, como Alagoas e Rio de Janeiro tiveram seus municípios divididos em blocos que garantiriam o subsídio cruzado e os interesses comerciais. Dessa forma, segundo o ex-presidente da CEDAE, “Quem pega um filé ali na Zona Sul [do Rio de Janeiro], tá pegando um osso (sic) numa região de baixa renda que tem que investir muito e que a inadimplência é alta […]”. Com base nesse modelo de combinação de municípios superavitários com os deficitários, logo após a mudança na legislação, os primeiros blocos foram a leilão em 2020 (Alagoas) e 2021 (Rio de Janeiro).
O modelo de desestatização desagradou setores da academia, sindicalistas e movimentos sociais, uma vez que não ficou claro como as novas concessionárias privadas devem reverter as grandes desigualdades no acesso aos serviços de água e esgoto no país. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua, IBGE, 2018) ilustram bem essas as desigualdades. Além das históricas desigualdades entre áreas rurais e urbanas no acesso à água, destacam-se as diferenças entre negros (pretos e pardos) e brancos; entre trabalhadores formais e informais; e segundo o nível de instrução/educação formal. Enquanto 71,2% dos brancos vivem em domicílios com abastecimento diário e estrutura para armazenamento de água, essa proporção se reduz a 55,4% entre os negros. As diferenças também são marcantes entre os trabalhadores: 73,5% dos empregados com carteira assinada, funcionários públicos e militares vivem em domicílios com essas condições; já entre os empregados sem carteira assinada essa proporção cai para 57%.
Em síntese, a maior parte da população sem acesso ao saneamento no Brasil vive em áreas rurais (via de regra, não incluídas nas concessões, a exemplo do estado do RJ) ou na periferia metropolitana, é negra e não tem acesso ao emprego formal. O desafio, seja para a gestão pública ou para a privada, é, portanto, levar água e esgoto a famílias em situação de vulnerabilidade com baixa capacidade de pagamento de tarifas.
Por um lado, a experiência internacional vem multiplicando casos de reversão de concessões à iniciativa privada – “remunicipalizações” – tanto em cidades do Norte quanto do Sul Global. Há casos em que as remunicipalizações foram motivadas por fracassos notáveis das privatizações (exemplo da Argentina). Nestes casos, houve clara priorização de investimentos nas áreas onde os serviços eram mais lucrativos, deixando as infraestruturas das áreas de moradia da população pobre sem manutenção adequada. Além dos fracassos, há experiências de cidades nas quais os serviços não apresentavam grandes problemas e os contratos não precisaram ser rescindidos, mas a retomada pelo setor público ao fim das concessões permitiu a redução das tarifas e políticas de atendimento aos mais vulneráveis, como ocorreu em Paris. No Brasil, já temos alguns casos que podem ser enquadrados nesse movimento, tais como Itu (SP) e dezenas de municípios no Tocantins.
Por outro lado, as Companhias Estaduais de Saneamento Básico (CESBs) – responsáveis pelo atendimento da maior da população brasileira – também vêm sendo criticadas por não terem conseguido universalizar o acesso aos serviços no Brasil. O caso da CEDAE ilustra bem essa situação, na qual existem indicadores muito distintos de atendimento entre centro da metrópole, periferia metropolitana e cidades do Interior. De fato, disputas políticas, investimentos descontínuos e um histórico de falta de transparência decorrente do modelo implementado na Ditadura Militar fizeram da CEDAE uma empresa subordinada aos interesses políticos dos governos estaduais, pouco aberta à participação da sociedade e ao diálogo com as prefeituras municipais. Em que pese o fato de a maior parte dos municípios brasileiros não ter capacidade técnica e financeira de estruturar os serviços de saneamento em seus territórios, o modelo de prestação direta pelos municípios vem sendo responsável por grande parte dos casos de sucesso da gestão pública.
Ainda que sejamos contrárias ao modelo de privatização do saneamento em curso no país, consideramos que algumas mudanças na gestão pública dos serviços possam contribuir com a redução das desigualdades e com a universalização. A democratização das CESBs, por exemplo, é fundamental para a superação do patrimonialismo ainda presente na gestão pública brasileira em diversos setores e, certamente, contribuirá para a universalização do saneamento e redução do clientelismo político. Maior envolvimento dos técnicos nas decisões e participação dos funcionários de carreira na escolha das diretorias são exemplos de ações que podem reduzir a influência de grupos políticos locais sobre os rumos das empresas e nas decisões acerca de investimentos públicos.
Ao mesmo tempo, o fortalecimento e apoio institucional e financeiro aos municípios que tenham a intenção de gerir os próprios serviços, bem como o incentivo à formação de consórcios públicos, parecem caminhos promissores.
Finalmente, é urgente o reconhecimento efetivo pelo executivo, legislativo e judiciário da importância social dos investimentos públicos em saneamento, como fundamentais para reduzir as desigualdades sociais no país. Da mesma forma, é fundamental adotar no marco legal e nas políticas públicas o referencial dos Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário. Com este reconhecimento, que vem recebendo o reforço de Projetos de Emendas Constitucionais (PEC) para sua inclusão explícita na Constituição Federal de 1988, restará institucionalizar instrumentos que garantam o acesso à água potável em quantidade que assegure a sobrevivência, saúde e higiene, independentemente da capacidade de pagamento das famílias. Países como África do Sul, Colômbia e Irlanda já avançaram nesse sentido e podem servir de inspiração para o aperfeiçoamento da PNSB no Brasil.
Ana Lúcia Britto é professora do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROURB-UFRJ) e pesquisadora do INCT Observatório das Metrópoles.
Suyá Quintslr é professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR-UFRJ) e pesquisadora do INCT Observatório das Metrópoles.