por Betânia Alfonsin

De todas as reformas enviadas ao Congresso Nacional por Michel Temer, a menos comentada pela imprensa foi a do marco legal da terra, talvez por tratar da mudança das regras de um jogo menos conhecido da população. Precisamos, no entanto, compreender o sentido daquela reforma para enfrentar o incremento da gentrificação que passaremos a assistir, de forma cada vez mais notável, nas cidades brasileiras.

As alterações introduzidas na legislação brasileira sobre regularização fundiária, não apenas representaram um retrocesso nas políticas garantidoras do direito à cidade, como promoveram um reducionismo da política pública em questão à mera entrega de títulos plenos de propriedade a possuidores de baixa renda. Para quem acredita na necessidade de uma reforma urbana no país, o saldo mais perverso da ruptura paradigmática operada na concepção da regularização fundiária pela nova lei tem um duplo viés: alinha o Brasil a um movimento internacional de financeirização da terra ao mesmo tempo em que reforça a colonialidade do direito de propriedade entre nós.

A política habitacional brasileira foi revolucionada após a promulgação da Constituição de 1988, pois a regularização fundiária havia substituído o modelo de produção habitacional em grande escala promovido pelo Banco Nacional da Habitação (BNH) no período da Ditadura Militar. Sem nunca ter sido reconhecida e valorizada anteriormente, a autoconstrução da moradia pelas populações de baixa renda passou a ter status constitucional de direito fundamental com a introdução do instrumento da usucapião urbana especial para fins de moradia no capítulo da Política Urbana, que reconhecia, inclusive, que esta era uma forma de dar à terra urbana uma função social.

Durante o ciclo da Nova República o Brasil se destacou na região latino-americana com o desenvolvimento de um paradigma de regularização fundiária plena, que apostava no reconhecimento do direito à segurança da posse pela via da titulação, acompanhada da urbanização do assentamento e da democratização da gestão dos projetos. A política pública claramente buscava dar efetividade ao direito à cidade e, nas cidades em que foi implementada, melhorou muito a qualidade de vida das famílias beneficiadas.

Favela do Vietnã, zona sul de São Paulo (André Lucas/DPA).

Beneficiários sem benefícios?

Após a reforma do marco legal da terra, a regularização fundiária no Brasil foi totalmente descaracterizada, e apesar de receberem um título de propriedade plena, os beneficiários poderão continuar sem acesso a infraestruturas como saneamento básico, fornecimento regular de energia elétrica e de água potável. Note-se que o direito fundamental amparado pela política pública não é mais o direito à cidade, mas passa a ser o direito de propriedade. Esse giro legal atende às necessidades atuais do sistema capitalista, que, em países de todo o mundo, vem promovendo a reforma de sistemas fundiários e apostado na titulação de assentamentos informais como forma de expandir o estoque de terras acessíveis, juridicamente, aos empreendimentos de interesse do mercado imobiliário.

Ao invés de garantir o direito à moradia das populações de baixa renda, o novo modelo poderá servir a um gigantesco processo de despossessão, no qual a titulação serve apenas para facilitar a expulsão dessas famílias de suas terras, vitimadas por uma espécie de urbanismo especulativo no qual se compra terra barata de famílias pobres para alterar formas de uso e ocupação do solo e, mais adiante, aliená-las por um valor muito mais significativo a camadas de mais alta renda. Assiste-se ao aparelhamento de uma política pública com o objetivo de fazer com que a função econômica da terra tenha prevalência sobre a função social da propriedade.

Para operar tal movimento, diversas conquistas anteriores foram retiradas da legislação, como dá exemplo a supressão da obrigatoriedade de que as áreas em que se opera uma regularização de interesse social fossem gravadas como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS). Apesar de parecer inofensiva, esta alteração legal acaba com uma medida de ação afirmativa que reservava áreas da cidade para uso exclusivo de moradia destinada à população de baixa renda, como uma espécie de “quota” para os empobrecidos no território das cidades.

Retrocesso em relação aos governos de esquerda

Trata-se de um imenso downgrade na política habitacional brasileira tal como implementada no período dos governos Lula e Dilma, já que, recentemente, também se perdeu o programa Minha Casa, Minha Vida. Na fórmula dessa nova política fundiária e urbana, nem se garante a permanência de quem já ocupou um lugar na cidade para fins de moradia através da regularização nem se produzem novas moradias. Trata-se de um verdadeiro apagão da política habitacional para a demanda prioritária das famílias de menor renda. É preciso lembrar que, segundo a Constituição Federal brasileira, promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico é uma competência comum de todos os entes da Federação e que, agora, não se faz nem uma coisa nem outra: nem se constroem, nem se urbanizam os assentamentos autoproduzidos.

Para além dos retrocessos na política urbana e de regularização fundiária, a nova lei representa um reforço cultural, jurídico e político do direito de propriedade no Brasil, o que, se por um lado nos remete ao passado, também parece ser bastante funcional para o sistema capitalista em seu atual estágio de desenvolvimento. Não é demais lembrar que o direito de propriedade foi introduzido no Brasil pela lei de Terras, em 1850, quando todas as terras que tinham sido doadas pelo Rei de Portugal sob a forma de sesmarias no território colonial foram transformadas em propriedades privadas – os primeiros latifúndios do país. Esse movimento jurídico desconsiderava as formas de acesso à terra praticadas pelas populações tradicionais, pelos povos originários, pelas populações ribeirinhas e beiradeiras da Amazônia, pelos quilombolas e caiçaras. A assinatura da lei de terras foi um golpe no sistema de posses que utiliza a terra como um comum e que, de uma penada, se viu deslegitimado, condenando milhões de pessoas à insegurança jurídica no exercício do direito de morar.

A violência desse processo tem uma marca de colonialidade indisfarçável, inclusive porque reproduz, nas Américas, a fórmula dos cercamentos das terras comunais ocorridos na Europa, no período anterior, em um processo fundamental para a acumulação primitiva do capital. Quando se desvelam essas origens do direito de propriedade, é possível perceber que o instituto da propriedade, no Brasil, faz parte do amálgama que sustenta a colonialidade do poder no país.

Eleger o título pleno de propriedade como forma de titulação na regularização fundiária, no entanto, não é apenas o reforço de um modelo de exclusão territorial praticado desde sempre na história brasileira. É também uma forma de remover obstáculos legais para a pavimentação jurídica da financeirização da terra em um país de dimensões continentais. Com milhões de hectares de terras ainda não tituladas, o Brasil, tal como muitos países da África, é uma última fronteira para a expansão e reprodução do capital internacional. Derrotar as formas de acesso à terra que se dão pela via da posse, tratando-a como um bem comum, é fundamental para permitir que operações financeiras possam ser lastreadas, com segurança jurídica, na terra.

Vamos a um exemplo potente: para promover a conversão de posses em propriedades a lei de regularização fundiária aprovada no Governo Temer introduziu uma nova forma originária de aquisição da propriedade, chamada de “legitimação fundiária”. O instrumento simplifica enormemente os processos de titulação, já que dispensa um lapso temporal mínimo sobre a terra, enquanto a usucapião, por exemplo, requer cinco anos de posse ininterrupta sobre o terreno. Além de não exigir tempo mínimo, também não há lote máximo passível de ser adquirido pela via da legitimação fundiária, enquanto na usucapião a área máxima é de 250 metros quadrados.

Finalmente, para completar o quadro polêmico das características desse novo instrumento, acresce-se o fato de que a propriedade se adquire por um ato administrativo da lavra do poder público, ou seja, fica dispensada apreciação judicial. A introdução de um mecanismo facilitador de processos de clientelismo político e de improbidade administrativa motivada por objetivos eleitoreiros, econômicos ou puramente pessoais, em mais de 5 mil municípios brasileiros de diferentes tamanhos, características e necessidades, impressiona pela ousadia jurídica.

Nova lei facilitou a aquisição de terras

A nova lei também facilita a aquisição de terras públicas, que agora podem ser compradas de maneira facilitada e em maiores extensões que no modelo anterior. As terras da Amazônia, em que se localiza a maior floresta tropical do mundo, essenciais para a contenção dos processos de desmatamento que ameaçam o planeta, não ficaram livres das facilidades da regularização fundiária proposta pela nova lei.

Note-se que por trás de um irresistível apelo à desburocratização, flexibilização e liberalização do acesso à terra, esconde-se um instrumento de constitucionalidade duvidosa, que só serve à rápida conversão de posses em propriedades que alimentarão uma máquina de transferência de ativos dos mais pobres para os mais ricos. Nada de novo no front, portanto, na roupa nova vestida pela regularização fundiária no Brasil, só a velha e conhecida colonialidade do poder.

Impossível terminar esse balanço sem registrar que o direito à cidade sofreu um enorme revés com uma reforma legislativa muito conveniente tanto para azeitar a aquisição de terras brasileiras pelo capital internacional, como para reforçar a concentração fundiária e excluir do acesso à terra as camadas empobrecidas das cidades e as populações tradicionais. Em um necessário processo de redemocratização do país depois de derrotado o movimento golpista que se iniciou em 2016, é indispensável apostar em dois movimentos simultâneos: a regulamentação de novos instrumentos capazes de resgatar a função social da terra, tais como o Termo Territorial Coletivo, bem como, de outro lado,  revisar as reformas legislativas promovidas pelos governos de Temer e Bolsonaro, a fim de retomar, democraticamente, o caminho das políticas públicas que buscam garantir o direito à cidade para todos, todas e todes.

Betânia Alfonsin é professora e pesquisadora do Programa de pós-graduação em Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP), coordenadora do Grupo de Pesquisa em Direito Urbanístico e Direito à Cidade da FMP e pesquisadora do Núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles.