Por vários autores*

O processo de urbanização no Brasil sempre esteve marcado por profundas desigualdades sociais, mais prementes nas grandes metrópoles, onde se acumula uma série de precariedades que incidem, sobretudo, nas condições de vida da população mais pobre. E um dos problemas que mais se destaca nesse quadro perverso é a precariedade habitacional. Documento recente divulgado pelo Ministério da Economia indica que, no ano de 2020, o déficit habitacional no país, dado que faz uma projeção do número de famílias vivendo em condições de moradia consideradas inadequadas ou insuficientes, estava em torno de 6 milhões de domicílios. Para piorar, 80% desse total estava concentrado em famílias com renda mensal de até três salários-mínimos.

São Paulo – Integrantes da Frente de Luta por Moradia (FLM) ocupam prédio na rua Ipiranga, região central (Rovena Rosa/Agência Brasil).

Essa condição se torna ainda mais crítica quando consideramos outras formas de inadequação habitacional, como a falta de infraestrutura urbana básica, o acesso limitado às redes de saneamento, a ausência de serviços públicos essenciais, a precariedade do transporte público, além da irregularidade fundiária e da insegurança da posse. Vale ressaltar ainda que essas moradias, muitas vezes, estão localizadas em áreas com alto nível de degradação ambiental e sujeitas a desastres naturais, a exemplo das tragédias recentes na região serrana do Rio de Janeiro ou no litoral de Pernambuco.

As grandes cidades do país cresceram e se expandiram, mas sem que fosse garantido o acesso amplo e universal à moradia digna. Mas o que fazer para reverter esse quadro?

Entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980, esse tema foi bastante discutido no âmbito do processo de abertura política, como parte das pautas que estavam sendo colocadas pelo Movimento Nacional da Reforma Urbana – uma ampla organização que reuniu movimentos sociais e setores da sociedade civil para pensar em soluções para produzir cidades mais justas e inclusivas. Essa articulação resultou na proposta de emenda popular enviada à Assembleia Constituinte, levando ao reconhecimento e à inclusão da função social da propriedade no texto constitucional.

Na década de 1990, o debate sobre a reforma urbana foi incorporado pela agenda política de várias administrações municipais e estaduais de orientação progressista. Estas implementaram experiências inovadoras buscando universalizar o direito à moradia, o reconhecimento da legitimidade dos territórios populares, além de ampliar a participação da sociedade civil nos processos decisórios. Exemplos importantes dessas iniciativas foram o Orçamento Participativo em Porto Alegre, o programa de mutirões para produção de moradias em São Paulo, o zoneamento inclusivo em Recife e as políticas de regularização fundiária de loteamentos populares no Rio de Janeiro, dentre tantas outras.

Estas ações buscaram incidir sobre o quadro histórico de desigualdade e segregação, promovendo melhorias efetivas sobre as condições de vida das famílias mais pobres. Além disso, deram-se de forma articulada às estratégias de organização e mobilização popular no âmbito das lutas urbanas, ratificando a importância dos espaços participativos para a construção de políticas com compromisso social.

Outro destaque importante desse período foi a institucionalização das políticas de urbanização de assentamentos precários – favelas, comunidades, palafitas, vilas, loteamentos – enquanto alternativa à lógica violenta da remoção, promovendo melhorias urbanas de diversas ordens, com ganhos em qualidade de vida para os moradores dessas áreas.

Nos anos 2000 e 2010 essas iniciativas alcançaram um novo patamar. Houve a criação do Ministério das Cidades e o governo federal passou a direcionar um grande volume de investimentos para programas de provisão habitacional para população de baixa renda e para a urbanização de assentamentos precários, incorporando políticas tributárias do debate sobre a Reforma Urbana e o Direito à Cidade. Embora não imune a contradições e problemas, esse momento foi o auge do esforço coletivo que vinha sendo feito nas três décadas anteriores para a constituição daquilo que poderíamos denominar como o projeto de um Estado de bem-estar social urbano no Brasil.

A partir da crise política e institucional, iniciada em 2015, esse processo foi enfraquecido e interrompido. O golpe parlamentar deflagrado em 2016 e a inflexão ultraliberal de contornos autoritários que tomou forma a partir de 2018 levou a um quase abandono dos investimentos em provisão habitacional e urbanização de assentamentos precários pelo governo federal. Foram reduzidos significativamente os recursos voltados para as políticas de habitação social com foco nas famílias mais pobres, além de desmontados os espaços institucionais então consolidados para formulação e gestão destas políticas. A título de exemplo, entre 2009 e 2015 foi contratada a construção, pelo Programa Minha Casa Minha Vida, de cerca de 1.700.000 unidades habitacionais para baixa renda com total de R$12,4 bilhões investidos. Entre 2016 e 2018 foram contratadas apenas 170.000 unidades com o valor investido ficando em R$3,6 bilhões. A substituição do Programa Minha Casa Minha Vida pelo Programa Casa Verde e Amarela, no atual governo, desconsiderou em seu desenho institucional as famílias de mais baixa renda e direcionou a grande parte dos recursos para a classe média, agravando ainda mais esse quadro.

A ausência de centralidade da habitação na agenda governamental teve implicações sérias na precarização das condições de moradia e das condições de vida de parcela significativa da população, principalmente nas grandes cidades. Situação que se agravou nos últimos dois anos com a crise sanitária e social gerada pela pandemia de Covid-19, quando o acesso à uma moradia digna se mostrou essencial para os cuidados necessários para prevenção do contágio e tratamento da doença.

Em síntese, por um lado, temos um repertório de experiências que nos permitem pensar em políticas e programas efetivos e, por outro lado, temos um enorme desafio colocado pelo legado histórico de exclusão e desigualdade, agravado pelos impactos da crise recente.

Com a proximidade da eleição para a Presidência da República é fundamental que o debate sobre o direito à moradia seja recolocado em pauta, como parte das discussões sobre a possibilidade da retomada de uma agenda social para o país. Pensando em contribuir com esse intento, propõem-se aqui cinco elementos que podem ajudar a orientar a construção de uma nova agenda para habitação social, no âmbito da Reforma Urbana e do Direito à Cidade, partindo do acúmulo do debate consolidado nas últimas décadas e buscando atender de forma mais adequada às necessidades que se colocam no cenário atual.

Política habitacional como política de Estado

É fundamental que se institua uma política habitacional permanente com ampla disponibilidade de recursos para romper com a prática corrente de programas provisórios com recursos limitados e não garantidos. A instituição dessa política habitacional deve ter como base uma política fundiária bem estruturada e robusta e ser integrada às demais políticas de desenvolvimento urbano, geração de emprego e renda, saúde pública e meio ambiente, articulando todos os níveis de governo e identificando as atribuições de cada ente, sendo pautada por um planejamento de curto, médio e longo prazos. Por fim, é essencial que a participação da sociedade civil e o controle social estejam garantidos, reconhecendo ainda o papel dos movimentos sociais de luta pela moradia na formulação e implementação de políticas públicas.

Política habitacional como política social

Conceber a política habitacional como política social para a garantia de direitos fundamentais exige que a dimensão social prevaleça sobre a dimensão econômica, reforçando a necessidade de mudança do paradigma da produção em massa de moradia via mercado que marcou os principais programas de habitação já implementados no país. Essa mudança de paradigma para a produção de habitação social implica considerar prioritariamente as necessidades habitacionais como determinantes para as tomadas de decisões, principalmente no que tange à escolha de terreno e das soluções construtivas adotadas. Essas decisões precisam ter em vista não apenas a relação custo-benefício envolvida na produção, mas especialmente a sustentabilidade – social, urbana, ambiental – dos espaços produzidos e das intervenções realizadas.

Desmercantilização da moradia

A desmercantilização da moradia é um debate complexo, porém fundamental para o contexto brasileiro, tendo em vista que historicamente as políticas habitacionais estiveram baseadas principalmente na transferência da propriedade privada individual para os beneficiários. Para avançarmos nesse sentido é importante formular alternativas a esse modelo levando em conta outras formas de produção e apropriação da moradia social. O debate contemporâneo já aponta caminhos promissores, como a produção coletiva conduzida por movimentos sociais, a organização de mutirões autogestionários, o uso da assistência técnica como suporte à produção de moradia popular, a locação social, além do reconhecimento de formas de propriedade coletiva da terra. Políticas habitacionais baseadas na constituição de um estoque público de moradias com cessão de uso também são uma alternativa possível. O ponto central desse debate é que passemos a compreender o acesso à moradia como um serviço público e não apenas como a oferta de bem, regido pelas regras do mercado e que se encerra na entrega das chaves pelo poder público.

Democratização dos processos decisórios

Esse é o ponto em que houve maior avanço desde os anos 1980, ganhando peso especialmente nas décadas de 2000 e 2010, com a criação dos conselhos e da realização das conferências da cidade. O sistema de participação construído nacionalmente certamente foi um instrumento importantíssimo para valorizar a participação e controle social nas políticas habitacionais. No entanto, é necessário avançar no sentido de que novas formas de articulação e organização da população sejam incorporadas, de maneira a construir mecanismos mais amplos e que deem maior penetração e capilaridade ao processo participativo. Destacam-se ainda como desafios urgentes nesse campo o controle crescente dos territórios populares por grupos criminosos, a violência institucional reiteradamente praticada nesses espaços e a corrente criminalização dos movimentos sociais de luta pela moradia. Mostra-se, portanto, estritamente necessário que o debate sobre a reestruturação da política de segurança pública seja incorporado à discussão das políticas habitacionais, resguardando a autonomia da sociedade civil organizada e dos movimentos sociais, garantindo o direito à participação social e a democratização dos processos decisórios.

Desenvolvimento de programas e projetos de intervenção integrados, com tratamento prioritário do risco sanitário e ambiental

Os eventos recentes ligados à crise sanitária gerada pela pandemia da Covid-19 e às catástrofes climáticas registradas em várias cidades brasileiras demonstram a importância do componente sanitário e ambiental para a formulação das políticas e programas de habitação social. São eventos graves, que atingem majoritariamente a população negra e mais vulnerabilizada, e que exigem intervenções estruturais de longo prazo, capazes de criar melhores condições de moradia, de acesso ao saneamento básico e de prevenção do risco. Mas que exigem também programas emergenciais, dotados de planejamento e de fluxos permanentes de recursos, com a criação de condições adequadas para que, quando ocorram eventos semelhantes, a população atingida seja rapidamente atendida e cuidada, de forma a garantir a sua saúde e condições adequadas de vida. É fundamental que os programas emergenciais estejam articulados à atuação da Defesa Civil e à rede de assistência e proteção social, e que possam contar com ampla participação das organizações sociais e populações locais.

Adauto Cardoso, Ariane Beltrão, Camila D’Ottaviano, Luciana Ximenes, Samuel Jaenisch, Tainá Alvarenga e Thais Velasco são pesquisadores(as) do INCT Observatório das Metrópoles