Por Diene Lemos Ghizzo
Dados do relatório “Ilegalismos e a cidade: controle territorial do voto e da produção imobiliária por milícias” apontam que, em dez anos, o número de eleitores em áreas controladas pela milícia no Rio de Janeiro aumentou 41,5%. As análises apresentadas revelam indícios relevantes de que grupos milicianos continuam se utilizando da estratégia de controle territorial sobre os votos como expressão do seu domínio sobre determinada região. Isso foi possível a partir da aplicação de uma estatística de mensuração do grau de concentração da competição nos locais de votação. O estudo foi elaborado pelo Observatório das Metrópoles, com apoio da Ford Foundation, e se debruçou sobre a atuação de grupos milicianos na produção da cidade, a partir da relação entre milícias e voto no controle territorial e a ação dos grupos milicianos na produção imobiliária. A equipe que organizou o relatório é constituída pelos(as) pesquisadores(as) Orlando Alves dos Santos Júnior, Filipe Souza Corrêa, Juciano Martins Rodrigues, Adauto Lucio Cardoso, Tarcyla Fidalgo, Taísa Sanches, Utanaan Reis Barbosa Filho, Bruno Frazão e Priscila Coli.
Milícias são grupos armados compostos por agentes de segurança do Estado, ativos ou aposentados (como policiais, bombeiros e agentes penitenciários), além de políticos e civis. Elas exercem o poder e o controle territorial sobre comunidades por meio da coação – física ou psicológica –, e do medo, mas também pela adesão e legitimação obtida no território. Além disso, exploram serviços que deveriam ser exercidos pelo poder público ou pelo mercado, como segurança, fornecimento de gás, internet, TV, iluminação, produção imobiliária, transporte etc. Em geral, a atuação das milícias na produção da cidade e no controle dos territórios populares tem forte impacto sobre as possibilidades de exercício da cidadania e do direito à cidade.
Segundo o relatório, desde 2012 as milícias parecem ter ingressado em uma nova fase de controle ostensivo dos territórios, investindo, inclusive, em sua expansão para novas áreas da cidade e da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, tradicionalmente dominadas pelo tráfico. Os pesquisadores analisaram estudos e reportagens publicadas nos últimos anos, que mostram os grupos milicianos investindo mais em algumas frentes de exploração econômica antes não tão visados, desenvolvendo, assim, um novo modelo de negócios. “O que percebemos é que, em diversos locais, há uma distribuição de votos concentrada em poucos candidatos. Em alguns desses locais, uma breve pesquisa em torno dos nomes mais votados revela ligações ou suspeitas de envolvimento com a atividade miliciana da região”, pontua o pesquisador Filipe Corrêa.
O relatório combinou dados do Mapa Histórico dos Grupos Armados no Rio de Janeiro e as informações disponibilizadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). No pleito eleitoral de 2020, 2.296.477 eleitores estavam registrados em locais de votação inseridos em áreas controladas pela milícia ou pelas facções do tráfico de drogas, o que correspondia a 24,6% de todo o eleitorado da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ). Para as eleições de 2022, os dados do TSE informaram que 13,1% dos locais de votação da RMRJ estão localizados em territórios controlados pela milícia; e outros 9,6%, em territórios dominados pelo tráfico de drogas. Portanto, somando todos os locais, 22,7% estão localizados em áreas sob controle armado. Nas eleições do dia 2 de outubro deste ano, aproximadamente um quarto de todo o eleitorado da RMRJ votou em áreas dominadas por algum grupo armado, sendo 14,8% apenas em áreas controladas pela milícia.
“De fato, o fenômeno é menos generalizado do que imaginamos. Em primeiro lugar, porque nosso sistema eleitoral oferece um bom filtro para a representação hiper localizada, pois, privilegia as votações mais amplas no distrito eleitoral, ou seja, no estado como um todo, para o caso das competições para deputado estadual e federal. Em segundo, porque se mescla a práticas tradicionais de assistencialismo que são historicamente praticadas em regiões carentes no Rio de Janeiro e outros municípios da região metropolitana”, ressalta Corrêa.
Grupos armados, milícia e voto
De acordo com o estudo, a novidade nesse fenômeno eleitoral é o fato de que a lógica de controle territorializado das disputas eleitorais tem se expandido para outros municípios da região metropolitana, nos mesmos padrões elevados de concentração antes vistos na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Além disso, há uma maior atuação de grupos milicianos na parte Oeste da RMRJ, em comparação com maior atuação das facções do tráfico de drogas na parte Leste. O que chama a atenção é a correspondência entre áreas de expansão do controle das atividades milicianas e a concentração da disputa eleitoral. “Isso indica uma relação que precisa ser investigada a partir dos resultados da eleição atual, para sabermos se a tendência se mantém, ou se está em retração”, esclarece Corrêa. Apesar de uma ofensiva recente capitaneada pela Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais da Polícia Civil, e dos indícios de uma forte disputa entre os grupos milicianos, a Baixada Fluminense tem se tornado uma área de expansão dessas atividades ilegais, incluindo o controle territorializado da competição a partir do fechamento da disputa para nomes diferentes dos seus indicados.
Nas eleições para a presidência da República em 2018, os dados revelam que o presidente Bolsonaro teve mais votos nas áreas controladas pela milícia do que nas áreas não dominadas. Em um dos mapas publicados no estudo, os pontos representam cada um do 3047 locais de votação da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e os polígonos azuis representam as áreas controladas pela milícia e suas vizinhanças imediatas (área de 500 metros em torno dos polígonos mapeados pelo GENI/FOGO CRUZADO), o que pode ser interpretado como área de influência do grupo armado, considerando que muitos locais de votação se encontram em grandes vias fora dos limites das comunidades sob o controle, mas que podem ser interpretadas como área de influência do grupo que domina o território.
Milícia e a produção imobiliária
A atuação da milícia na produção imobiliária se intensificou ao longo dos anos. A partir de casos denunciados pela imprensa e por outras fontes, o relatório buscou ilustrar essa diversidade, organizada em três tipologias: controle e intermediação do acesso à terra urbana; produção habitacional própria e controle da produção habitacional promovida pelo poder público. No caso do controle e intermediação do acesso à terra urbana, os pesquisadores analisam a prática expressa no controle do acesso à terra urbana envolvendo a apropriação de terras públicas ou a permissão para ocupação de áreas vazias, públicas ou privadas. Um exemplo é o relatório do Centro de Pesquisas do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, publicado em outubro de 2020 e intitulado “As Milícias e a Exploração de Terras na Região do Mendanha: estudo de caso”, que identificou quatro condomínios ilegais sendo erguidos no bairro de Campo Grande, na área do Parque Estadual do Mendanha, controlados por milicianos.
Sobre a produção habitacional própria, expressa a produção direta de unidades habitacionais, sejam elas produzidas de forma legal ou não, quando realizadas por grupos milicianos. No dia 12 de abril de 2019 ocorreu o desabamento de dois prédios, no bairro Muzema, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, deixando 24 pessoas mortas. As investigações revelaram que as construções eram realizadas sob o comando de grupos milicianos que controlam a região, ilegais e em área de preservação ambiental. A tragédia expôs mais esta modalidade de atuação da milícia, que também se verifica em outras áreas da cidade e da RMRJ, evidenciando a ampliação do seu modelo de negócios.
Já na modalidade que aborda o controle da produção habitacional promovida pelo poder público, os grupos milicianos exercem o domínio sobre os conjuntos habitacionais produzidos pelo Estado, como o programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV) ou dos atuais Programas Casa Verde e Amarela, do governo federal. Levantamento realizado pelos autores do relatório em jornais eletrônicos disponíveis na internet, revela denúncias em 67 dos 106 empreendimentos do programa MCMV, Faixa 1, destinado à população de mais baixa renda, sendo 45 denúncias envolvendo as milícias e 22 envolvendo grupos do tráfico de drogas, considerando o período de 2015 a 2022.
“As denúncias revelam a extensão do controle exercido pelos grupos milicianos nesses conjuntos habitacionais, envolvendo a cobrança de taxas pela segurança, venda de cestas básicas por valores muito acima do mercado, oferta de serviços de internet, TV a cabo e de gás, controle dos serviços de vans e mototáxis, com a ameaça e expulsão dos moradores que não concordassem em efetuar os pagamentos cobrados”, ressalta o estudo.
Propostas para o enfrentamento das milícias
Conforme o relatório, para o enfrentamento das milícias e de seu controle sobre os territórios populares, tendo como referência o direito à cidade, é necessária a adoção de estruturas de cogestão público-comunitária para uma gestão territorial democrática, desmercantilizada e desmilitarizada que se contraponha ao controle das milícias sobre os territórios populares. Além da implantação de programas de provisão pública dos serviços urbanos nos conjuntos do MCMV, como gás, creche, educação e mobilidade, de forma a enfrentar o modelo de negócios dos grupos milicianos. Os pesquisadores propõem, ainda, uma intervenção pública de requalificação urbanística da área do entorno dos conjuntos do MCMV, a requalificação do sistema viário, ligando estes conjuntos com as centralidades próximas, garantindo o transporte público, de forma a tirar o controle dos serviços de mobilidade dos grupos milicianos.
Por fim, a criação de mecanismos de fiscalização sobre os processos de apropriação privada de terrenos públicos e sobre as construções irregulares em áreas de proteção ambiental em áreas controladas por milícias – o que requer criar condições de segurança para a atuação da fiscalização urbanística que é realizada pelo município. E a desmilitarização das políticas de segurança pública, com o fim das operações militares em favelas. Para os pesquisadores, o fortalecimento do tecido associativo é um pressuposto para o exercício da autonomia política e para a representação legítima da população junto ao poder público, e uma condição fundamental para a implementação de políticas de desenvolvimento urbano mais sustentáveis e inclusivas.
*Diene Lemos Ghizzo é jornalista, membro da equipe de Comunicação do Observatório das Metrópoles.