Por Nelson Rojas de Carvalho
Muito embora Lula tenha obtido, no dia 2 de outubro, seu melhor desempenho em eleições presidenciais, angariando 57 milhões de votos, com 48% dos votos válidos contra 43% atribuídos a Bolsonaro, e chegado na dianteira em 14 estados, além de poder contar com o precedente até o momento de em nenhum segundo turno de eleições presidenciais no Brasil ter havido reversão das posições do primeiro turno, o conjunto dos resultados traz enormes preocupações em relação não só ao desfecho da eleição, mas, também, ao futuro da democracia no país.
Se Lula teve agora seu melhor desempenho nas urnas, Bolsonaro avançou, igualmente, e obteve 1,7 milhão de votos a mais, se comparado ao primeiro turno das eleições em 2018, indicação clara da consolidação do bolsonarismo. Além do inesperado desempenho de Bolsonaro, deve-se destacar o crescimento expressivo do partido do presidente, o PL, que se tornará o primeiro partido tanto na Câmara como no Senado, com respectivamente 99 e 13 cadeiras. Vale assinalar, ainda, que essa bancada, embora localizada no centrão, cresceu essencialmente puxada pela liderança de Bolsonaro: entre deputados e senadores eleitos pelo PL, destacam-se figuras orgânicas do grupo político bolsonarista, como Ricardo Salles, General Pazuello, Magno Malta, Damares Alves e Marcos Pontes.
Como resultado conjugado de um fundo eleitoral que se situa na casa dos R$ 4 bilhões de reais e, sobretudo, de emendas orçamentárias oriundas do orçamento secreto que somam R$ 13 bilhões de reais, das urnas do dia 2 de outubro emergiu um Legislativo com composição ainda mais conservadora e mais à direita do que o atual Congresso: o PL e partidos de direita somarão 273 deputados na Câmara. Perderam cadeiras o bloco de esquerda, com representação de 124 deputados, e os partidos de centro, notadamente o PSDB, que sai das urnas com uma bancada minguada de 18 deputados. No Senado, o panorama não é diferente: o PL e os partidos de direita somarão 51 cadeiras de um total de 81 representantes. Vale salientar que, tanto na Câmara como no Senado, Bolsonaro contará com fácil maioria de 2/3 dos votos, necessária para embalar, se reeleito presidente, uma agenda econômica de natureza ultraliberal.
Se é certo que o Congresso chancelará uma eventual agenda radical neoliberal, no caso da reeleição de Bolsonaro, com a previsível privatização da Petrobras e da Caixa Econômica Federal, resta saber se será ator coadjuvante de uma escalada autoritária por parte do presidente. Se essa escalada está no horizonte do presidente, seguramente não parece o desfecho ótimo para os partidos do centrão, já que o fortalecimento excessivo dele subtrairia a capacidade de negociação desses partidos. Se parecem distantes medidas clássicas e extremas de erosão da democracia, como a ampliação do número de vagas do STF, não é difícil esperar ações de constrangimento da Suprema Corte, como um processo de impeachment contra o ministro Alexandre de Moraes, além de medidas conservadoras no campo dos costumes, como a aprovação do Estatuto da Família.
Por fim, vale destacar, como adereço não menos importante do fortalecimento de Bolsonaro, os resultados de lideranças ligadas a ele nos principais estados da Federação: Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Cláudio Castro e Romeu Zema, já eleitos, estarão no palanque de Bolsonaro no segundo turno, o que pode implicar na reversão do desempenho de Lula em Minas Gerais. Em São Paulo, a inesperada posição de liderança do ex-ministro Tarcísio de Freitas no primeiro turno, com 42% dos votos contra 35% de Fernando Haddad, o torna candidato competitivo, podendo, assim, ampliar a margem de ganhos de Bolsonaro no estado.
Com esse cenário definido – um Congresso e os principais estados da Federação com orientação à direita –, Lula certamente estará obrigado, para ter viabilidade eleitoral no segundo turno, a empreender uma guinada ainda mais ao centro e a fazer acenos aos setores conservadores. Se eleito, do ponto de vista político-institucional se verá constrangido a governar no espaço do centro político e, ainda assim, certamente enfrentará o veto da ala bolsonarista eleita e alojada no centrão. Vale lembrar que as forças de centro-direita no interior do Congresso têm hoje número suficiente para iniciar um processo de impedimento do presidente eleito. Resta indagar se dentro desse espaço político, o espaço da centro-direita, o lulismo pode ser reeditado.
As condições para a reedição do lulismo
A reedição das bases do lulismo parece fundamental, haja vista o fato que, talvez tão importante quanto o equacionamento da governabilidade do ponto de vista político-institucional, seja a recuperação por um eventual governo do PT dos segmentos populares, localizados nas periferias metropolitanas, que fizeram o movimento pendular do lulismo para o bolsonarismo e que agora retornam em grande número para a base do candidato petista.
Como se sabe, o lulismo se traduziu num conjunto de políticas personificadas na figura de seu líder, as quais implicaram mobilidade social para os segmentos populares sem a ativação da dimensão do conflito de classe. Se o Bolsa Família se afigura como a ação com impacto social de maior visibilidade do lulismo, o conjunto das intervenções teve um alcance muito mais amplo, e no que se refere às áreas metropolitanas, as políticas de efeito redistributivo decorreram da expansão do crédito, da política de valorização contínua do salário-mínimo e da expansão dos postos de trabalho. É indiscutível que esse conjunto de políticas, que se intensificaram a partir de 2006, só se viabilizaram na esteira do boom das commodities, resultante da expansão da demanda por matérias-primas vindas essencialmente da China, que fez com que o Produto Interno Bruto (PIB) nos anos Lula tivesse crescido a uma média de 4% ao ano.
Se o conjunto de políticas de transferência de renda implantadas no governo Lula se viu facilitado por um cenário econômico internacional extremamente favorável ao Brasil, do ponto de vista social, esse conjunto de políticas se ancorou numa estrutura social caracterizada por bases organizacionais bastante distintas daquelas que hoje observamos, a saber, um mundo do trabalho menos atomizado e menos precarizado, minimamente organizado por estruturas sindicais. Hoje, ao lado dos desafios político-institucionais, os constrangimentos econômicos e sociais para a reedição do lulismo e para a reconfiguração da base social do governo Lula parecem se afigurar como os grandes desafios de governabilidade de um novo mandato do PT. Com efeito, é necessário indagarmos: como, no contexto de uma retração econômica de âmbito internacional, será possível a reincorporação do segmento popular das periferias metropolitanas, mais conservadores em seus valores, mais precarizados e atomizados em sua inserção no mercado de trabalho, sem qualquer vertebração institucional que não as igrejas? A incorporação desses segmentos é tanto mais importante quando se sabe que foram as periferias metropolitanas que se deslocaram em 2018 na direção de Bolsonaro.
Reconquista de territórios
Sabe-se que Bolsonaro, em 2018, venceu na quase totalidade dos municípios das Regiões Metropolitanas do Rio de Janeiro, São Paulo e de Belo Horizonte e, embora derrotado, tenha apresentado incursões nada desprezíveis nas Regiões Metropolitanas do Nordeste, fica evidente a localização do território político capaz de fortalecer ou de fragilizar as bases de governabilidade do novo governo do PT. A reconquista dessas áreas exige, de um lado, a compreensão das transformações sociais, culturais e econômicas que ocorreram em nossas periferias metropolitanas nesses últimos anos. De outro lado, dada a precarização e vulnerabilidade dessas áreas, agravadas nos últimos quatro anos, é necessária a formulação e implementação de um verdadeiro New Deal para as nossas regiões metropolitanas: programas de infraestrutura e mobilidade urbana geradores de emprego; aportes em recursos para saúde, educação e moradia. Enquanto na primeira etapa do lulismo a região Nordeste foi beneficiária de um conjunto expressivo dos programas de transferência de renda e de infraestrutura, tornando-se, por isso, um território político avesso às incursões da direita, tanto em 2018 como em 2022, hoje é necessária a expansão da fronteira política progressista na direção das periferias metropolitanas – áreas, em razão de sua vulnerabilidade e abandono, ocupadas por pastores e milicianos, sensíveis ao discurso conservador radicalizado, até agora embalado por Bolsonaro. Não parece exagero afirmar que a retomada desses territórios, por meio de um amplo conjunto de políticas redistributivas, a curto prazo é condição necessária para a renovação da base social das forças progressistas e, a médio e longo prazos, requisito fundamental para o combate de dinâmicas sociais e políticas que vão na contramão da democracia, como as milícias e o discurso populista-autoritário, mancomunados na retórica e na ação de desestruturação do Estado e da democracia.
*Nelson Rojas de Carvalho é cientista político, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles. Atualmente é pesquisador convidado do Instituto Kellogg.