por Luiz Cesar de Queiroz
Não há dúvidas de que estamos experimentando um momento sem precedentes na sociedade brasileira, com a questão urbana ocupando o centro dos grandes dilemas nacionais. A acumulação combinada de várias crises exige um novo olhar para entender as interações em jogo e pensar de maneira renovada os caminhos possíveis ao enfrentamento do apagão que atinge as cidades. A pandemia provocada pelo coronavírus – somada à atuação irresponsável e negacionista do governo federal e de seus sombrios gabinetes paralelos – adicionou ingredientes corrosivos ao tecido social carcomido pelos efeitos da crise econômica que se arrasta desde 2014 e assume traços cada vez mais preocupantes de estagflação.
A grave crise social é marcada por um acúmulo de um contingente inédito de desempregados, pela diminuição brusca da renda e do poder de compra das famílias e pelo aumento da pobreza e da miséria. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Diese), quase 17 milhões de brasileiros gostariam de trabalhar, mas não conseguiam ou simplesmente desistiram de procurar trabalho. Com base nos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima-se que 50% dos domicílios estão abaixo da linha de pobreza e a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional calcula que 116,8 milhões de brasileiros vivem algum grau de insegurança alimentar.
As crises sanitária, econômica e social criaram também interações sinérgicas com a crise política, materializada na incapacidade das autoridades federais em amenizar seus efeitos. O governo federal está submetido exclusivamente aos interesses de uma irresponsável e tóxica coalizão de poder. Nela se articulam os interesses do rentismo e de seu projeto de assalto ao Estado, dos representantes do partido militar e do tradicional fisiologismo do chamado Centrão, com amplo domínio sobre o orçamento federal. O círculo se fecha com uma profana aliança entre o grupo fiel ao bolsonarismo, formado por familiares do presidente Jair Bolsonaro, conservadores fanáticos e empresários da fé. Infiltrados no centro do Governo Federal, esses grupos são responsáveis diretos pela incapacidade governativa em relação aos interesses gerais da população brasileira e pela ineficiência da máquina pública, principalmente no enfrentamento da pandemia. Soma-se, ainda, uma incerteza fiscal provocada pela necessária expansão do gasto estatal para atender não só as necessidades emergenciais da população frente à grave crise social, mas também a dívida social gerada pelas travas ultraliberais do chamado teto de gastos.
A crise urbana
Nesse contexto, podemos identificar três sinais de emergência. Em primeiro lugar, a explosão do custo urbano de reprodução social, notado especialmente entre os pobres e os empobrecidos. Segundo a Pesquisa de Orçamento Familiar 2017-2018, R$ 7 em R$ 10 das despesas médias mensais das famílias são gastos com habitação (R$ 3,60), transportes (R$ 1,80) e alimentação (R$ 1,7). O grupo extremo mais pobre da distribuição de renda consome até 70% da sua renda familiar com estes itens, enquanto os mais ricos limitam-se a 45%.
Em segundo lugar, o apagão da mobilidade urbana precariza ainda mais os que buscam uma fonte de ocupação e renda nas metrópoles. Conforme levantamento da Associação de Empresas de Transportes Urbanos (NTU), entre março de 2020 a abril de 2021 ocorreu a interrupção da prestação dos serviços por 25 operadoras e um consórcio operacional, além da demissão de 76.757 trabalhadores.
E, por fim, a crise urbana também se manifesta pelos sucessivos desastres urbanos-ambientais materializados em deslizamentos, desmoronamentos e alagamentos. São consequências da histórica precariedade urbana que marca os espaços populares, combinada com o desmonte do sistema de monitoramento e gestão dos riscos de desastres. As tragédias de Petrópolis e Franco da Rocha são os maiores exemplos.
A crise urbana e o desenvolvimento nacional
A crise urbana em formação tem uma natureza nova em relação àquelas identificadas por estudiosos dos anos 1970. À época, a crise urbana foi problematizada a partir das contradições entre a cidade (integrando as condições gerais da reprodução ampliada do capital industrial) e a sua função na reprodução ampliada da força de trabalho. Agora, observamos sinais claros do surgimento de uma crise urbana distinta, mais ampla e de natureza estrutural. E isso se deve ao colapso da função da cidade ligada às necessidades da reprodução das vidas biológica, social e individual, como consequência do simultâneo processo de urbanização da sociedade e do capital – sob uma dominância rentista.
Esta crise urbana deve ser entendida em suas conexões com as múltiplas crises mencionadas anteriormente. Mas, é necessário compreendê-las como expressões fenomenológicas da aceleração do processo de desconstrução do país como Nação, como foi antecipado por Celso Furtado no início da década de 1990. Os efeitos de longo prazo da nossa subordinação à globalização, à neoliberalização e à financeirização estão hoje vem transformando o território brasileiro em receptáculo dependente do capitalismo rentista-extrativista global, na forma de uma plataforma internacional de valorização financeira do estoque de riqueza velha e de uma economia primária-exportadora de commodities e importadora de bens digitais. Uma trajetória que coloca o país sob o risco de retornar à condição de colônia, com a destruição de sua capacidade (política, institucional, tecnológica e produtiva) em comandar o seu destino em um momento de mudança de época do capitalismo.
Deste ângulo de análise, buscamos pensar a crise das cidades como uma das questões a serem enfrentadas por um projeto de retomada do desenvolvimento liderado por forças progressistas na direção da reconstrução e transformação do Brasil. Isso inclui posicionar centralmente a reforma urbana e o direito à cidade na agenda dessa reorganização nacional, buscando sua articulação com ações que dinamizem o crescimento econômico.
Ao mesmo tempo, é imprescindível conceber como as políticas de universalização dos serviços coletivos poderiam garantir a proteção do trabalho cada vez mais precarizado e o acesso às oportunidades, à renda e aos bens comuns. São passíveis de integrar estes objetivos estratégicos, por exemplo, programas de saneamento básico, de provisão de moradia de interesse social e de construção de um sistema único de mobilidade urbana que garanta o financiamento das infraestruturas e dos serviços.
Repensar a agenda da reforma urbana e do direito à cidade
As considerações mencionadas acima afirmam a importância de repensarmos a agenda da reforma urbana e do direito à cidade formulada e experimentada a partir da Constituição de 1988 e do Estatuto da Cidade. Trata-se de revisitar os seus fundamentos e propostas ou até mesmo reconstruí-los ou reinventá-los a partir de temas que elencamos a seguir.
Em relação às desigualdades urbanas, devemos consolidar o conceito de desenvolvimento urbano como ferramenta de promoção da (in)justiça distributiva do bem-estar proporcionado pela cidade, mas levando em consideração dimensões que relacionam com o meio ambiente construído. Portanto, realizando-se não apenas na esfera individual, mas com outros elementos além dos clássicos relacionados aos serviços e equipamentos urbanos, assim como à estrutura de oportunidades (da educação, por exemplo) e à reprodução da vida (saúde, violência, insegurança pública e meio ambiente). Por fim, contam também as segmentações sociais (por raça e gênero, por exemplo) que hoje atravessam, mais do que nunca, a estrutura social e suas hierarquias.
Em relação à questão ambiental, é inadiável superar a histórica ausência do tema nas discussões sobre reforma urbana e direito à cidade. O acúmulo de conhecimento sobre a crise climática e suas consequências em termos de desastres socioambientais constituem referências fundamentais para alimentar a agenda das transformações urbanas defendida aqui. Destacam-se três preocupações que merecem a nossa atenção nos dias de hoje:
- Como instituímos uma regulação no uso e ocupação do solo urbano que supere as vulnerabilidades socioambientais, tornando as cidades mais resistentes aos efeitos dos eventos climáticos extremos;
- Como combatemos a injustiça socioambiental decorrente da combinação de mudanças climáticas, desastres e as desigualdades estruturais da nossa sociedade;
- Como mudamos a matriz sociotécnica que fundamenta a organização e o funcionamento das nossas cidades na direção da sua descarbonização, com relevância à reversão do modelo de mobilidade baseado na autolocomoção e nos combustíveis fósseis.
Em relação à gestão democrática, a recuperação de instituições e instâncias, como os conselhos e conferências, é muito importante, mas talvez não seja suficiente. Além da fragmentação social, do enfraquecimento de movimentos e sindicatos, da debilidade dos vulnerabilizados e precarizados, houve mudanças estruturais nas formas de comunicação/informação, mobilização social e possibilidades de participação em função dos meios informacionais. Há que se considerar que vários atores emergentes no campo das lutas pelo direito à cidade não se identificam com as estruturas institucionais burocratizadas anteriores, permeáveis a particularismos. Portanto, é necessário retomar e reinventar a institucionalidade da participação.
Em relação à regulação urbana, visando o cumprimento dos princípios das funções sociais da cidade e da propriedade, não será fácil reverter algumas das muitas boiadas urbanísticas e ambientais com base apenas nos instrumentos do Estatuto da Cidade. A política habitacional para baixa renda cumpriu importante papel de política econômica anticíclica, mas foi orientada apenas para a produção de unidades habitacionais e não para proporcionar o acesso dos pobres à cidade, além de ignorar a regulação urbana, contribuindo para a especulação imobiliária.
Em relação às políticas urbanas nacionais redistributivas e inclusivas, em face aos grandes programas nacionais, como o Minha Casa, Minha Vida e Programa de Aceleração do Crescimento, é preciso construir um sistema nacional de desenvolvimento urbano, com atribuições claras dos entes federados e reestruturação de aparatos institucionais, articulados à regulação urbana, para a constituição de políticas nacionais e regionais de desenvolvimento urbano.
Em relação aos sujeitos coletivos do direito à cidade, é necessário avançar na articulação dos diversos sujeitos que são maltratados por uma ordem urbana injusta, concentradora de bens e serviços e que é estigmatizadora por critérios de renda, educação, raça e gênero. A fragmentação e as alterações do tecido social decorrentes das múltiplas crises trouxeram dificuldades para os movimentos sociais urbanos e sua ação na esfera pública e lutas urbanas. E os sujeitos coletivos da Reforma Urbana e do Direito à Cidade incluem as formas tradicionais de associativismo (lutas por bem-estar urbano nos territórios), os diversos movimentos sociais urbanos e as múltiplas manifestações que hoje expressam a diversidade do ativismo urbano nas metrópoles, com especial destaque para as questões identitárias (gênero e raça) e para a expressão cultural das juventudes – na dinâmica de resistência e de crítica social. Estas ações e seus múltiplos repertórios ocorrem em redes de interação social, com relevância aos movimentos culturais das juventudes ligados à questão racial e à violência policial.
Em relação à economia política da cidade, a incorporação a um novo modo de acumulação tem como expressão a aceleração das transformações da economia política das cidades – operadas pelo avanço do rentismo e do extrativismo na acumulação urbana. Por um lado, ocorre uma crescente articulação da produção imobiliária, da infraestrutura urbana e dos serviços com os circuitos do capitalismo financeirizado, notadamente sob a dominância da sua forma mais avançada, que são os fundos financeiros (private equity). Esta transformação submete a economia política a interesses e forças que se organizam em escalas sobrelocais, alterando e fragilizando a capacidade dos regimes de governança das cidades em definir e controlar as políticas urbanas. Mais: também ocorrem mudanças na clássica organização dos capitais urbanos com a constituição de grandes empresas que atuam simultaneamente nos circuitos imobiliário, de obras públicas, infraestrutura e serviços urbanos. Como consequência, formas monopolistas se manifestam no poder de planejar e coordenar a geração e a extração das rendas urbanas.
São com estas preocupações que este texto abre uma série de artigos que serão aqui publicados durante este ano, escritos por pesquisadores e pesquisadoras que integram o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Observatório das Metrópoles. Abordando várias dimensões e temas do programa da reforma urbana e do direito à cidade em debate na sociedade brasileira, os artigos propõem reflexões sobre os desafios e caminhos para a construção de uma conexão com o desenvolvimento nacional.
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, professor titular do IPPUR/UFRJ. Coordenador do INCT Observatório das Metrópoles. Pesquisador IA CNPq.