Por vários autores
Enfrentar os problemas relacionados à dinâmica do mercado de trabalho e à Reforma Urbana, particularmente nas metrópoles onde a questão é mais grave, passa pela reconstrução de um padrão de desenvolvimento que articule essas duas esferas. Para isso, é necessário que os eixos de ação para a reestruturação do mercado de trabalho, do ponto de vista macroeconômico, sejam condicionados às determinações territoriais, ou seja, além do olhar sobre o emprego e a renda, as políticas setoriais de expansão da infraestrutura social e urbana devem se preocupar com a construção de cidades menos segregadas e socioambientalmente mais justas. A maior efetividade desse projeto depende da construção de um pacto social que referende um novo projeto político, baseado na ampliação da seguridade social, da proteção ao trabalho e do acesso à previdência, com financiamento adequado para a política urbana e que avance na direção da expansão de outras formas de organização da sociedade.
Os principais desafios para a questão do trabalho são:
- Retomar uma agenda de luta por direitos trabalhistas e revisão da Reforma Trabalhista de 2017;
- Redefinir, em outras bases, a associação financeira do sistema de proteção social com a condição de assalariamento, para criar novas fontes de financiamento para além das originadas no mercado de trabalho;
- Fortalecer a legislação e a fiscalização do trabalho com objetivo de combater todas as formas de precarização, discriminação e exploração abusiva do trabalho;
- Melhorar as condições de trabalho, especialmente de segmentos mais vulneráveis (jovens, não brancos, mulheres, pessoas com deficiência, povos tradicionais, LGBTQIA+ etc.); e
- Encarar as consequências do avanço da era digital com o trabalho remoto, home-office ou misto.
O enfrentamento desses desafios pode ser facilitado com a retomada do crescimento ambientalmente sustentável da atividade econômica; o fomento a políticas sociais e de transferência de renda; uma reforma tributária progressiva; o fortalecimento dos fundos parafiscais Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS); e a coordenação institucional para territorialização das políticas a partir de novos arranjos, como os metropolitanos.
Do ponto de vista territorial, defendemos a necessidade de uma maior articulação de investimentos que tenham potencial para se tornarem “multiplicadores urbanos”. Há na história recente um padrão recorrente do uso de políticas setoriais de infraestrutura e de habitação como políticas anticíclicas. Embora importantes para estimular a economia, tiveram efeitos danosos ou subaproveitados do ponto de vista da Reforma Urbana. Nesse sentido, estudos mostram como a construção de grandes conjuntos habitacionais na periferia das cidades aumenta os custos de provisão de infraestrutura e deslocamento, ou como a construção de vias que priorizam o transporte individual podem piorar a mobilidade nas cidades aumentando custos coletivos e individuais. Assim, ao não articular as políticas setoriais anticíclicas à política urbana, perde-se a oportunidade de reduzir de forma mais consistente as desigualdades, já que a melhoria no acesso a bens de uso coletivo tem efeitos tão ou mais duradouros que as melhorias na renda individual.
Esse conjunto de desafios e proposições partem do diagnóstico de que, nas últimas quatro décadas, o mercado de trabalho brasileiro passou por transformações expressivas que levaram à mudança na composição setorial do emprego e a uma desestruturação intensa, tanto do ponto de vista legal/institucional, quanto da qualidade dos postos de trabalho. Isso significou altos níveis de informalidade, rotatividade e precarização do trabalho e comprometimento da renda. Tal realidade levou a uma piora das condições de vida, acirrou o conflito distributivo nas cidades e afetou fundos relevantes para o financiamento da política urbana. Apesar de ser uma realidade geral, o quadro atual do mercado de trabalho impacta intensamente as metrópoles.
A mudança setorial na composição do emprego está atrelada ao processo de desindustrialização: de um lado, a perda relativa de postos de trabalho na indústria significa o surgimento de novas ocupações em atividades do setor de serviços altamente especializadas, vinculadas às novas tecnologias e à reorganização das cadeias produtivas em níveis nacional e internacional; de outro, como a desindustrialização no Brasil se dá também em termos de desadensamento das cadeias produtivas domésticas, há uma perda de ocupações industriais. Isso reforça as características históricas do nosso mercado de trabalho, empurrando parte da força de trabalho, outrora empregada na indústria (que tende a ter proteção social e rendimento médio maior), para serviços de menor produtividade. Esse fenômeno, captado pelos dados da pesquisa PNAD Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é mais agudo nas metrópoles que concentraram 49% das perdas do emprego industrial (459 mil postos de trabalho) entre os terceiros trimestres de 2014 e de 2022.
Somado a isso, especialmente a partir da segunda metade dos anos 2010, o Brasil intercalou momentos de profundas crises com períodos de lenta recuperação. Entre 2015 e 2016, houve uma crise econômica e política cujos impactos no mercado de trabalho expressaram-se na escalada da desocupação e da subutilização da força de trabalho. Nesse período, dobrou o número de pessoas em busca de emprego, chegando a mais de 14 milhões no primeiro trimestre de 2017, sendo que 6,2 milhões se encontravam nas áreas metropolitanas.
Na sequência, observou-se uma lenta recuperação (2017 a 2019), quando houve uma relativa estabilização do contingente de desocupados, porém com continuidade do processo de elevação dos subutilizados, que atingiu 28,7 milhões de pessoas no Brasil e 10,4 milhões nas regiões metropolitanas no segundo trimestre de 2019. Nesse período de baixo dinamismo, o aumento dos postos de trabalho se deu em ocupações de menor qualificação, informais e de baixa remuneração.
Com a pandemia da Covid-19 e seus reflexos negativos sobre a atividade econômica, o emprego e a renda, intensificou-se o problema, com ampliação significativa do total de desocupados e de subutilizados até o primeiro trimestre de 2021. O Gráfico 1 mostra como esse movimento a partir de 2014 é mais expressivo nas regiões metropolitanas, com níveis de desocupação e subutilização maiores que a média nacional.
A mesma série de dados aponta para um movimento de recuperação do mercado de trabalho a partir do segundo trimestre de 2021. No entanto, quando analisamos com maior atenção o perfil da expansão da ocupação recente, observa-se uma elevação do número de postos de trabalho na informalidade e, portanto, sem proteção, e do trabalho por conta própria, especialmente aqueles associados aos processos de uberização e de economias de plataformas.
O crescimento da informalidade, puxado pelo emprego desprotegido, emerge de um contexto mais amplo que não responde apenas à conjuntura econômica, mas, também, às mudanças institucionais de liberalização do mercado de trabalho pós-2015. Associado a isso, observa-se uma transição para uma nova era digital, com a introdução de novas tecnologias de comunicação e informação e das economias de plataformas, que têm reforçado esse processo e permitido a instituição de relações trabalhistas mais fluidas e vulneráveis. Essa nova informalidade assume formas contemporâneas como uberização; pejotização; terceirização; subcontratação; intermitência no emprego e contratação por tempo parcial (essas duas últimas impulsionadas pela Reforma Trabalhista de 2017); teletrabalho; trabalho por demanda; dentre outras.
Para reforçar esse movimento, cresce o ideário do empreendedorismo, não apenas como ideologia, mas como parte da racionalidade econômica que, diante de um mercado de trabalho desestruturado e que não garante proteção social para todos, “empurra” o trabalhador para o autoemprego. Isso ocorre, frequentemente, via figura jurídica do microempreendedor individual e da pejotização.
A partir dos dados do Gráfico 2, nota-se uma tendência de expansão do emprego desprotegido do ponto de vista dos direitos trabalhistas, inclusive da seguridade social. Após o terceiro trimestre de 2014, o total de ocupados por conta própria no país passou de 21 milhões para 25,6 milhões de pessoas, em igual trimestre de 2022. Já nas áreas metropolitanas, esse aumento foi de 2,6 milhões de pessoas, o que representa aproximadamente 57% do incremento total do Brasil. Vale ressaltar que as metrópoles respondem por 38,6% do total de ocupados do país. Observa-se, também, a elevação do número de ocupados sem contribuição para a Previdência, interrompida apenas no período de maior gravidade da pandemia, pois, com o agravamento da crise da Covid-19, muitos trabalhadores informais viram sua fonte de renda desaparecer.
Em síntese, o enfrentamento dos desafios relacionados ao trabalho e à Reforma Urbana passa pela reconstrução de um padrão de desenvolvimento que articule reestruturação do mercado de trabalho e investimentos setoriais, condicionados às determinações territoriais. De um lado, o Estado precisa intervir sobre dinâmicas que se encontram em curso, como a desindustrialização e o desadensamento de cadeias produtivas domésticas, criando empregos de maior qualidade e inseridos no novo paradigma tecnológico. Ao mesmo tempo, deve avançar em uma agenda de luta por direitos trabalhistas, fortalecer a legislação e a fiscalização do trabalho, melhorar as condições de trabalho, dar acesso à proteção e à previdência social e criar novas bases de financiamento para a proteção social. De outro, é preciso expandir investimentos em infraestrutura social e urbana articulados à agenda da Reforma Urbana, que promovam, por exemplo, a expansão do parque imobiliário para população de baixa renda em áreas centrais das metrópoles e a estruturação de sistemas de transporte de massa, produzindo cidades menos segregadas e socioambientalmente mais justas.
Juliana Bacelar de Araújo é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e pesquisadora do INCT Observatório das Metrópoles.
Beatriz Tamaso Mioto é professora da Universidade Federal do ABC (UFABC) e pesquisadora do INCT Observatório das Metrópoles.
Cassiano José Bezerra Marques Trovão é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles.
Raul da Silva Ventura Neto é professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) e pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles.