por Vanessa Marx
E se pudéssemos vislumbrar políticas urbanas inovadoras e renovadas para as cidades brasileiras a partir do olhar das mulheres?
Nosso país, segundo dados projetados pelo IBGE em 2022, tem mais da metade da sua população composta por mulheres: são 109.838.053 mulheres frente a 104.990.487 homens. Muitas destas mulheres vivem, trabalham e circulam em cidades, percebendo através de seus olhares que a agenda urbana poderia ser diferente. O cotidiano apresenta contextos desafiadores nas cidades brasileiras que são cada vez mais desiguais e violentas. Para pensar em um território para as mulheres deveríamos refletir sobre onde vivemos, para onde vamos, como é o nosso dia a dia na cidade, por onde circulamos e se isso ocorre com segurança.
Nesse sentido, é fundamental que a participação e a representação contemplem: a) a presença da diversidade das mulheres no território; b) as transformações do território a partir da incidência das mulheres nos instrumentos de gestão urbana; e c) as agendas das mulheres em relação ao planejamento urbano.
Quando falamos em diversidade das mulheres em relação à política urbana estamos pensando em mulheres negras, indígenas, brancas, trans, etc., portanto, não seria possível universalizar as pautas, mas combiná-las em um denominador comum: ser mulher e viver em cidades.
As cidades brasileiras sejam elas pequenas, médias e grandes/capitais poderiam priorizar a segurança e o combate à violência contra a mulher no espaço urbano, já que são elas que sofrem violência em seus corpos, assim como assédio nas ruas e nos transportes públicos. O tema da mobilidade e da segurança para as mulheres nas cidades vem sendo um eixo prioritário em fóruns e diálogos, como os realizados no projeto de extensão “Mulheres e Cidades” que desenvolvemos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Outros temas relacionados a incidência das questões de gênero em relação à política urbana têm sido trabalhados também no âmbito dos movimentos e organizações sociais, em outras universidades, em pesquisas, na rede BrCidades, que apresenta um eixo específico sobre Gênero, Raça, LGBTQIA+ e classe nas cidades, e no Observatório das Metrópoles Núcleo Porto Alegre.
A participação das mulheres foi importante no processo de preparação da Conferência Popular pelo Direito à Cidade, que ocorreu entre os dias 03 a 05 de junho de 2022, em São Paulo. Com a adesão de 626 entidades, a iniciativa mobilizou mais de 200 eventos preparatórios. Movimentos, organizações, universidades se mobilizaram propondo temas e agendas vinculadas com o direito à cidade para a conferência, lugar onde pensamos em aprofundar e atualizar o conceito de direito à cidade, a partir da diversidade e da perspectiva de gênero e raça.
A Conferência foi formada por oficinas e uma delas abordou o tema “Mulheres, população LGBTIQ+, sexismo e vivência nas cidades”. Esta é uma inovação na articulação do tema nas discussões sobre as cidades em conferências nacionais. Propostas em todo Brasil, incorporadas ao evento nacional, foram discutidas em conferências preparatórias durante o primeiro semestre de 2022. Uma delas, intitulada “Gênero, Raça e Classe: como superar a manutenção e produção das desigualdades urbanas?”, foi organizada pelo BrCidades e mobilizou três eixos de discussão: (1) mulheres e o direito à moradia; (2) mulheres e o empreendedorismo social e economia solidária; e (3) mulheres, interseccionalidade e políticas públicas.
Em relação à moradia digna para mulheres, mencionamos a necessidade de evitar os despejos e a destinação de prédios públicos para moradia social. Muitas mulheres são chefes de família no Brasil, por isso, além da moradia, os serviços básicos como provisão de energia elétrica, saneamento básico e acesso à água deveriam estar disponíveis e não serem privatizados.
Outro tema importante para a autonomia das mulheres é a geração de emprego e renda e a existência de uma economia do cuidado, pois a pandemia nos mostrou que a saúde pública e o cuidado foram fundamentais para a sobrevivência nas famílias.
A partir destas pautas fica cada vez mais evidente que não podemos renunciar ao Estado e que as políticas públicas para as cidades, a partir da perspectiva de gênero, deveriam ser pensadas dentro de uma estrutura institucional com alocação de recurso.
A pandemia agravou a situação das mulheres em diferentes aspectos: o risco com a própria saúde; a necessidade de cuidado com os filhos e familiares; a perda de fontes de ingresso e renda; e ainda o aumento dos índices de violência. A feminização da pobreza continua sendo um problema no Brasil, com a pandemia organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), alertaram sobre a existência de grupo dos vulneráveis (mulheres, idosos, crianças e pessoas de baixa renda) e a necessidade de apoio a estes grupos por parte dos Estados, para que fossem reduzidos os danos neste contexto.
O ativismo urbano feminista tem sido muito importante para visibilizar a agenda das mulheres em relação às cidades. Como diria Angela Davis (2017) em sua obra “Mulheres, Cultura e Política”, o principal desafio a ser enfrentado no ativismo é responder às necessidades do momento de modo que a luz que se pretende lançar sobre o presente possa ao mesmo tempo iluminar o futuro. Neste sentido é que pensamos que as propostas de políticas urbanas feitas pelas mulheres nesta Conferência de 2022 possam reverberar pelos próximos anos quando pensarmos as cidades brasileiras. Para isso, a necessidade de orçamento público direcionado para as cidades com uma maior descentralização de recursos para os municípios.
Pensar a representação é fundamental neste ano de eleições no Brasil. Poderíamos aproveitar este momento para pensar a representação de mulheres que incorporem reflexões e a pauta de gênero na relação com a política urbana.
Neste contexto, seria importante identificar as necessidades das mulheres que vivem em quilombos urbanos e nas comunidades indígenas, como se organizam, quais são suas necessidades e propostas para o planejamento da cidade.
Seria importante que as transformações do território sejam pensadas a partir da incidência das mulheres nos instrumentos de gestão urbana, através dos mecanismos de participação, como por exemplo a revisão de Plano Diretor e os projetos para regiões e bairros das cidades. Por último, seria importante unir esforços e denominadores comuns através do encontro das mulheres ativistas e acadêmicas com gestoras do planejamento urbano e com a representação política.
A diversidade da representação feminina nestas próximas eleições poderia ser uma oportunidade para que a pauta das mulheres seja incorporada na agenda das cidades do Brasil. A política urbana nacional mereceria ser revisitada e pensada a partir do olhar de gênero e raça. Em uma país desigual como o nosso, onde algumas cidades são o retrato da espoliação urbana, faz-se urgente e necessário pensar o planejamento urbano a partir da perspectiva de gênero.
Ressaltamos aqui alguns pontos para começar esta discussão:
- Mobilidade, transporte público e acesso ao espaço público com segurança para as mulheres;
- Direito à moradia e remuneração do cuidado;
- Combate à fome e a pobreza com políticas de renda mínima e redes de apoio nas cidades.
Necessitamos de uma agenda própria em relação à gênero e raça nas cidades e podemos começar a trabalhar nesta perspectiva desde agora, aproveitando o contexto da Conferência Popular pelo Direito à Cidade onde as prioridades desta relação foram debatidas.
Vanessa Marx é professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Coordenadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Porto Alegre.