por Claudia Monteiro Fernandes
O debate sobre importantes transformações aceleradas pela pandemia colocou em destaque o trabalho do cuidado e a importância das políticas públicas sociais em todo o mundo. Com a necessidade de isolamento social, as atividades econômicas foram drasticamente desaceleradas ou mesmo interrompidas na maior parte dos setores produtivos da economia.
No entanto, foram necessárias estratégias que mantivessem em funcionamento atividades como saúde, assistência social, alimentação e educação, por exemplo. Chamaremos aqui de “Economia do Cuidado” as atividades econômicas relacionadas a alojamento, alimentação, saúde, educação, assistência social, serviços pessoais e serviços domésticos, que fazem parte das categorias utilizadas nas pesquisas oficiais brasileiras.
É um conjunto heterogêneo, que contém desde trabalhadores mais vulneráveis, como os domésticos e de alguns serviços pessoais, até melhores remunerados e com maior status social, como médicos e professores universitários, por exemplo.
O tema do cuidado tem ganhado importância e mesmo centralidade na discussão sobre as novas configurações da economia contemporânea, que tradicionalmente vinha deixando de lado uma parcela importante das atividades produtivas, considerando-as equivocadamente como improdutivas ou secundárias.
As tendências demográficas mais importantes nos últimos anos são comprovadamente o envelhecimento da população e de redução de nascimentos. A pandemia de Covid-19 precipitou a constatação da vulnerabilidade da humanidade em todos os espaços sociais e as ideias de autonomia e individualidade foram confrontadas com as de coletividade e interdependência entre indivíduos e grupos de indivíduos.
No momento inicial, o coronavírus SARS-CoV-2 foi definido como “democrático” por atingir, em tese, todas as pessoas “indistintamente”, não importando classe ou posição social. À medida que a pandemia foi se alastrando, a percepção mudou e ficou claro que eram mais atingidas pessoas mais pobres, sem acesso à saúde ou cuidados fundamentais para sua sobrevivência, e sem condições de isolamento ou distanciamento social e saneamento, como nas densamente habitadas periferias das metrópoles brasileiras.
Nos momentos mais agudos da crise, as redes de solidariedade entre moradores de comunidades populares foram acionadas para garantir alimentação às famílias de trabalhadores que perderam toda e qualquer fonte de renda. Também se tornaram visíveis as redes de apoio no cuidado a crianças, quando as escolas estavam fechadas, e de apoio a idosos, grupo de maior risco de morte.
A formulação de políticas sociais e urbanas passa necessariamente por pensar as estratégias do cuidado, e não mais da “assistência social” precária e paliativa. Espera-se que um dos aprendizados da recente crise pandêmica pela qual (ainda) passamos tenha sido a importância dos trabalhadores “formais” do cuidado, mas também daqueles que exercem atividades de cuidado dentro de seus lares ou ajudando outras pessoas, da mesma família ou não, na maior parte das vezes sem remuneração.
Essas são chamadas de atividades da reprodução social, que garantem a existência das pessoas, principalmente daquelas mais vulneráveis e dependentes, sobretudo entre as classes mais pobres, que não têm acesso a elas pela via do mercado. Com o envelhecimento populacional, a relação de dependência de pessoas economicamente ativas tende a aumentar.
Portanto, ficou patente a relevância de políticas públicas que garantam melhores condições a esses trabalhadores em nome do bem-estar social e da própria sobrevivência humana em tempos de crises pandêmicas mundiais que certamente se repetirão.
Em 2019, 23,8 milhões de pessoas ocupadas no Brasil exerciam atividades formalmente classificadas como Economia do Cuidado em seu trabalho principal, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC) do IBGE. Dentre elas, 38,6% estavam nas metrópoles brasileiras. Esta é a parte “visível” das atividades de cuidado, que vão muito além do trabalho remunerado e são exercidas nos lares ou por meio de redes de solidariedade que não entram nas estatísticas oficiais.
Neste mesmo ano, o IBGE levantou, em suplemento especial, informações sobre o cuidado de pessoas e os afazeres domésticos, atividades “invisíveis” na sociedade. Tal levantamento nos permitiu comparar a “Economia do Cuidado” medida pela ocupação com as atividades “invisíveis” de cuidados a pessoas e afazeres domésticos.
Tratando da Economia do Cuidado medida pelas pesquisas oficiais, as metrópoles brasileiras têm proporções mais elevadas de participação dos ocupados nessas atividades que os demais municípios, fora das metrópoles. A região metropolitana de Salvador tem a maior proporção de pessoas ocupadas na Economia do Cuidado em seu trabalho principal: 32,8% do total de ocupados. Em seguida, aparece a região metropolitana de Brasília (RIDE-DF), com 29,3% e as demais regiões metropolitanas têm entre 29% e 25% de participação de ocupados nessas atividades. Ou seja, mais de um quarto das ocupações.
No caso das atividades “invisíveis” de cuidado, 23,8% das pessoas de 14 anos ou mais nas metrópoles brasileiras declaram realizar alguma atividade de cuidado a pessoas, tais como alimentar, vestir, ajudar em atividades educacionais, monitorar, acompanhar ou transportar, especialmente crianças, idosos e pessoas com deficiência. O processo crescente de mercantilização urbana tem pressionado a transferência de muitas dessas atividades da esfera doméstica ou coletiva para o mercado, o que muitas vezes as torna inacessíveis a famílias mais pobres nas grandes cidades, que não conseguem pagar cuidadores, creches ou trabalhadoras domésticas. Destacaram-se as regiões metropolitanas de Belém (26,9%), Belo Horizonte (25,5%) e Brasília (25%).
Por outro lado, e de maneira complementar, declararam realizar tarefas domésticas no próprio domicílio em que residiam nada menos que 73,6% das pessoas de 14 anos ou mais nas metrópoles. Essas atividades não são regularmente registradas nas pesquisas domiciliares e, pelas elevadas proporções de pessoas que declararam realizá-las, podemos perceber que o cuidado é muito maior que a “economia do cuidado”.
Em 2021, já levando em conta os efeitos da pandemia de Covid-19, estimamos que 21,4 milhões de pessoas estavam ocupadas na economia do cuidado. Ou seja, apesar da experiência que destacou a importância desse setor para a sociedade, o número de ocupados nessas atividades caiu em relação a 2019. Podemos inferir que grande parte das atividades de cuidado ficou ainda mais “invisível”, fora das estatísticas oficiais, apesar de aparecerem em manchetes da mídia que registraram as “redes de solidariedade” no auge da pandemia. Na verdade, as redes de cuidado sempre estiveram presentes entre famílias e comunidades, e na ausência de políticas públicas emergenciais, vieram à luz.
Em estudo recente sobre a estrutura social nas metrópoles brasileiras, o Observatório das Metrópoles apresentou análises de categorias socioocupacionais agregadas, como forma de compreender as mudanças em tal estrutura no Brasil nos últimos anos. Um dos achados foi a permanência de uma forte divisão sexual e racial do trabalho ao longo do tempo, em categorias como a de professores e trabalhadoras domésticas, por exemplo.
Essas categorias fazem parte da economia do cuidado. As categorias com menores remunerações e piores condições de trabalho são majoritariamente femininas e negras, e muitas vezes estigmatizadas como “não produtivas”, assim como as atividades de cuidado a pessoas e afazeres domésticos. A análise comparativa dessas categorias na estrutura social brasileira, assim como em diferentes territórios, é fundamental para a compreensão da dinâmica social e econômica brasileira num momento de forte crise. Na perspectiva dos estudos sobre “cuidado” e reprodução social, a divisão sexual do trabalho tem peso significativo.
Nas metrópoles, o número médio de horas trabalhadas no total de ocupados era de 38,4 horas em 2019, sendo que para os homens a média era de 40,5 horas e para as mulheres, de 36 horas. Por sua vez, ao se analisar as horas dedicadas a cuidados a pessoas e/ou afazeres domésticos, os homens dedicavam em média, 10,8 horas, enquanto as mulheres dedicavam 17,9 horas. Portanto, o uso do tempo, considerando as horas “efetivamente trabalhadas”, em todos os trabalhos, somadas àquelas dedicadas ao trabalho de cuidado “invisível” para a economia, termina sendo superior para as mulheres (53,9 horas) que para os homens (51,4 horas).
As mulheres trabalhadoras em posições mais vulneráveis e precárias nas metrópoles brasileiras também são as que mais tempo dedicam a cuidados com outras pessoas e afazeres domésticos. Enquanto mulheres profissionais liberais dedicam em torno de 14 horas a essas atividades, e aquelas que eram dirigentes, 15,7 horas, trabalhadoras dos serviços domésticos chegam a dedicar 21,5 horas em média a cuidados.
É importante lembrar que esse tempo é acumulado a sua jornada de trabalho. Ainda que, entre os ocupados metropolitanos, os homens venham cada vez mais dedicando seu tempo ao cuidado e atividades domésticas, principalmente relacionados a crianças, eles dedicam cerca de 60% do que dedicam as mulheres.
Mulheres negras dedicam-se mais às atividades de cuidado (18,6 horas em média), seguidas de mulheres brancas (17,1 horas), e os homens dedicam em média 5 horas a menos, sendo que homens negros (11 horas) se dedicam um pouco mais que homens brancos (10,6 horas). Reiterando que mulheres são maioria na economia do cuidado e nas atividades de cuidado “invisíveis”, a abordagem interseccional é fundamental para os estudos sobre o tema cuidado ampliado.
Na região metropolitana de Salvador, por exemplo, a população é majoritariamente negra (85,7%, contra 56,4% na média nacional), e ainda assim a presença de pessoas negras no cuidado “invisível” é ainda maior (87,1%). Entre as mulheres negras essa sobrerrepresentação fica mais evidente: elas são 46,4% da população da RM Salvador e 55,2% entre as pessoas que realizaram atividades de cuidados pessoais em 2019, a maior proporção entre todas as regiões metropolitanas analisadas.
Os resultados de pesquisas como as do Observatório das Metrópoles deixam clara a necessidade de inserir novas perspectivas para o debate, tais como as desigualdades regionais, raciais e de gênero, à abordagem dominante de classe social – que prioriza o acesso à renda e ao trabalho.
Reconhecendo a complexidade histórica de uma sociedade colonial e periférica como a brasileira, compreender o tema cuidado é fundamental para que uma reforma urbana tenha importante impacto na redução de desigualdades estruturais que configuram as metrópoles e a sociedade no país.
Claudia Monteiro Fernandes é economista, doutora em ciências sociais e pesquisadora do Núcleo Salvador do Observatório das Metrópoles.