Por Orlando Alves dos Santos Junior, Filipe Souza Corrêa e Juciano Martins Rodrigues
Qual o impacto do controle armado das milícias nos territórios sobre o voto nas eleições? É possível identificar o efeito milícia sobre os processos decisórios eleitorais? Tendo em vista os resultados do primeiro turno das eleições de 2022, buscamos refletir sobre essas questões analisando a votação nas áreas controladas por grupos milicianos no Rio de Janeiro. A análise leva em consideração os resultados das votações para presidente (primeiro turno), governador do Estado, Senador, Deputados Federais e Deputados Estaduais. A análise indica um “efeito milícia” sobre os resultados eleitorais, o que permite dizer que as áreas controladas por esses grupos apresentaram certas tendências políticas diferenciando-se do restante da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Nessas áreas, os candidatos conservadores e suas coalizões políticas, liderados pelo atual presidente Jair Bolsonaro, receberam proporcionalmente mais votos do que nas demais áreas da metrópole.
Qual o peso eleitoral das áreas controladas por grupos milicianos?
Ao combinarmos os dados do Mapa Histórico dos Grupos Armados no Rio de Janeiro, produzido pelo GENI/UFF e pelo Fogo Cruzado, e as informações disponibilizadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) encontramos que, no pleito eleitoral de 2022, 14,8% dos eleitores estavam cadastrados para votar em locais de votação situados em territórios controlados pela milícia. Outros 9,7% estão localizados em territórios dominados pelo tráfico de drogas. Portanto, somando todos os eleitores registrados nestes locais, 24,9% dos eleitores votam em áreas sob algum controle armado. Em comparação com as eleições realizadas em 2012, o número total de eleitores cadastrados para votar nesses locais aumentou 29,3%. Nesses dez anos, considerando-se apenas as áreas controladas pela milícia, o aumento foi de 41,5%, enquanto o percentual de eleitores votando em áreas sob controle do tráfico permaneceu praticamente o mesmo.
Os microdados do TSE revelam que, no primeiro turno, o candidato Jair Bolsonaro (PL/PP/Republicanos) apresentou um melhor desempenho nas áreas controladas por milícias, onde obteve 53,1% dos votos, em comparação com sua votação na RMRJ como um todo (49,9%). De forma inversa, o candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT/PSB/PSOL/Avante/PCdoB/PV/Solidariedade/PROS/REDE) teve o seu percentual de votos reduzido nas áreas controladas por milícias, onde obteve 38,7% dos votos válidos, em comparação aos 41,6% obtidos na RMRJ como um todo. Observamos que a diferença entre os dois candidatos, a favor de Bolsonaro, cresce de 8% na Região Metropolitana para 14% nas áreas controladas. Essa diferenciação se torna ainda mais relevante no contexto de uma disputa eleitoral polarizada entre estes dois candidatos. Interessante notar que nenhum outro candidato teve diferenças significativas entre os percentuais de votos nas áreas de milícia em comparação com sua votação na RMRJ como um todo. Ou seja, a clivagem parece ter efeito apenas para o comportamento dos eleitores dos dois candidatos, mesmo considerando-se a inexpressividade eleitoral dos demais candidatos na RMRJ.
Na eleição para governador, o candidato apoiado por Jair Bolsonaro, Cláudio Castro (Avante/Democráticos/MDB/PL/PMN/Podemos/PP/PROS/PRTB/PSC/PTB/Republicanos/Solidariedade/União) foi o mais votado nas áreas controladas por milícias, alcançando o percentual de 59% dos votos válidos destas áreas. Mais uma vez, tomando como referência a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, percebe-se que o candidato Cláudio Castro teve mais votos nessas áreas do que na RMRJ como um todo, onde obteve 55% dos votos, ou seja, sua votação é marcada por uma diferença de 4 pontos percentuais para mais justamente nas áreas sob controle das milícias. Nenhum outro candidato teve uma votação com comportamento similar.
Ao contrário, outros dois candidatos ao governo do Estado do Rio de Janeiro, Marcelo Freixo (PT/PV/PCdoB/Cidadania/PSDB/Rede/PSOL/PSB) e Rodrigo Neves (Patriota/PDT/PSD/AGIR), ambos apoiados por candidatos da oposição, Lula e Ciro Gomes, respectivamente, tiveram performances eleitorais opostas à de Castro, recebendo menos votos nas áreas controladas por milícias em relação ao total de votos recebidos na RMRJ. Enquanto Freixo obteve 29% dos votos na RMRJ, nas áreas controladas por milícias seu percentual foi de 27%. Já Rodrigo Neves obteve 9% na RMRJ, enquanto obteve 7% nas áreas controladas por milícias. Ou seja, ambos candidatos tiveram votações com diferenças de aproximadamente 2 pontos percentuais para menos nas áreas sob controle dos grupos milicianos.
A eleição de 2022 teve um resultado peculiar, considerando-se divisões que ocorreram tanto no grupo de apoio a Bolsonaro, quanto no grupo de apoio a Lula. Enquanto Romário era o candidato do partido do Presidente, Daniel Silveira (PTB) e Clarissa Garotinho (UNIÃO) também disputavam espaço entre os apoiadores mais enraizados – o primeiro contou com uma declaração de voto do presidente na última hora, já Clarissa se alinhou recentemente às pautas bosonaristas e ligou sua imagem à primeira dama. Portanto, os percentuais de votos válidos obtidos por esses três candidatos em áreas sob controle da milícia foram bastante próximos, sendo 27% para Romário e 20% para Daniel Silveira. No entanto, quando se compara esses percentuais com a votação obtida na RMRJ como um todo, Clarissa Garotinho (UNIÃO) é a que apresenta a maior diferença: 2,5 pontos percentuais. Enquanto Daniel Silveira apresentou uma votação muito concentrada em regiões do eleitorado de mais alta renda, como a Barra da Tijuca, Romário e Clarissa disputavam os votos no restante da Zona Oeste e em alguns municípios da Baixada Fluminense. Também é importante considerar a aproximação de Clarissa Garotinho com o segmento evangélico, utilizando-se da referência à imagem de Michele Bolsonaro em sua campanha, assim como o apoio de Waguinho, prefeito de Belford Roxo, que é presidente do diretório estadual do seu partido.
Nas eleições de 2022 tivemos 3.172.663 válidos para candidatos a deputados estaduais, sendo 438.611 em área sob controle da milícia. Portanto, tivemos aproximadamente 14% dos votos válidos oriundos de locais de votação inseridos nessas áreas. Para a análise dos candidatos eleitos com votos concentrados nessas áreas, considerarmos os 10 eleitos a partir do grau de concentração de votos obtidos em áreas controladas por milícias, acima de 20% em relação ao total de votos obtidos pelo mesmo candidato.
Antes de tudo, é importante destacar que ser eleito com votos concentrados em áreas de milícias não significa um vínculo do candidato com grupos milicianos. Os votos obtidos podem ser decorrentes de vários meios: campanhas nas redes sociais, vínculos com movimentos associativos, influência da máquina administrativa, entre outros. De fato, a eleição de um(a) candidato(a) a deputado estadual e a deputado federal, em geral, requer uma estratégia que combina votos difusos e votos concentrados no território. Portanto, esta primeira análise identifica o peso do território na eleição de parlamentares, parcela do qual pode ser decorrente do controle territorial das milícias
A deputada estadual reeleita Lucinha (PSD), chegou a concentrar 55% de sua votação individual em áreas sob controle da milícia, sendo 25 pontos percentuais a mais que o segundo colocado nesse quesito, Carlinhos BNH (PP), que obteve 30% de sua votação em área sob controle da milícia – o dobro da média das votações nessas áreas. No caso da eleição da Lucinha, podemos provavelmente ter a influência da máquina administrativa da Prefeitura do Rio de Janeiro, especialmente para o caso dos três parlamentares eleitos pelo PSD, mesmo partido político de Eduardo Paes. A coligação de Bolsonaro elegeu dois parlamentares entre os dez que obtiveram mais de 20% dos votos em áreas controladas por milícias, Carlinhos BNH (PP) e Giselle Monteiro (PL). Os demais candidatos eleitos neste grupo são do campo do centro e da centro-direita (União, Pros, MDB, Avante e Solidariedade). No caso da bancada estadual, não deixa de chamar atenção a ausência de candidaturas de partidos de esquerda nesta lista.
A coligação que apoiou o candidato Jair Bolsonaro recebeu a maior fatia dos votos dos eleitores da Região Metropolitana do Rio Janeiro (39%) e as áreas controladas pelas milícias não incidiram em seus padrões de voto, mantendo-se um percentual praticamente igual nessas áreas (38%). Considerando-se todos os votos (incluindo os votos dos candidatos não eleitos), o perfil é o mesmo. A coligação de apoio à Bolsonaro obteve 29% de todos votos da Região Metropolitana, mantendo o mesmo padrão em áreas controladas por milícias, onde a coligação obteve 28% de todos os votos.
No caso da coalizão de apoio ao candidato Lula, verifica-se um fenômeno diferente. Considerando-se os votos obtidos pelos deputados eleitos, a coalizão não consegue repetir a mesma performance alcançada na Região Metropolitana, onde obteve 27% dos votos. Já nas áreas controladas por milícias alcança apenas 21% dos votos, o que significa uma redução de 6% dos votos obtidos.
Mesmo considerando-se o total de todos os votos recebidos, incluindo os candidatos não eleitos, constata-se uma diferença significa. Na RMRJ a coligação obteve 27% dos votos, enquanto nas áreas de milícia o percentual se reduz, alcançando 23%.
Por fim, destacamos que, apesar das dificuldades em isolar o efeito milícia nos resultados eleitorais, a análise combinada dos resultados das eleições majoritárias e proporcionais indica a influência do voto em territórios controlados por milícias para o candidato Bolsonaro e para a sua base de apoio. O efeito milícia poderia ser definido como a influência eleitoral em apoio ao candidato Bolsonaro e a sua coalizão partidária, incidindo no voto dos moradores dos territórios controlados por grupos milicianos, tanto por meio da difusão de valores conservadores vinculados a esse campo político, como por meio de barreiras à entrada de outras candidaturas de oposição nesses territórios. Esse controle evidentemente não é absoluto em razão da difusão de outras candidaturas por meio de redes sociais, mobilizando outros vínculos identitários ou associativos. De qualquer forma, o controle territorial emerge como uma variável decisiva na composição dos votos de um conjunto significativo de candidatos, tanto os que concorrem para cargos majoritários como para os cargos proporcionais, o que possibilita afirmar que a lógica miliciana concorre e se combina com a lógica clientelista na busca do voto nos territórios populares.
Orlando Alves dos Santos Junior, Filipe Souza Corrêa e Juciano Martins Rodrigues são do IPPUR/UFRJ, pesquisadores do INCT Observatório das Metrópoles.